
Fardado e empunhando um megafone, o então governador de Minas Gerais, Itamar Franco, declarou guerra à privatização no final do século passado. Às margens do lago de Furnas, ordenou que 2,5 mil policiais e bombeiros erguessem barracas e posicionassem tanques.
Disse que usaria “balas de verdade” e ameaçou explodir um dique da usina se o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) insistisse em entregar a estatal. O episódio, que ficou conhecido como Operação Furnas, marcou o auge da resistência mineira à agenda privatista dos tucanos.
Pouco depois, Itamar transformou o confronto em lei. Incluiu na Constituição Estadual uma cláusula que proibia a venda de estatais sem aprovação popular. Era o antídoto mineiro contra o ímpeto privatista federal. O mesmo referendo que agora o governador Romeu Zema (Novo) tenta apagar da história.
Os deputados da base aliada de Zema escolheram a madrugada para avançar na venda da Copasa, a empresa de água e saneamento de Minas Gerais. Na calada da noite, aprovaram, em primeiro turno, a Proposta de Emenda à Constituição que retira dos mineiros o direito de se manifestar por referendo sobre a privatização da companhia de saneamento.
A sessão começou às 18h de quinta e atravessou a noite até o amanhecer de sexta da semana passada. Foi a única deste século marcada para a madrugada. A votação terminou com 52 votos favoráveis ao governo e 18 contrários, quatro acima do mínimo exigido.
Mais de duas décadas depois, Zema tenta desmontar esse legado. Itamar defendia que “o povo tem o direito de dizer não à venda do que é seu” e deve estar se revirando no túmulo.
Zema e sua base evitam o termo “privatização”. Preferem falar em “modernização” da Copasa, uma penugem laranja-novista para o velho tucanês privatista.
O governador passou a afirmar que a operação é necessária para obter vantagens fiscais, por meio do Propag, o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados com a União, que prevê redução de juros e alongamento de prazos para quem vender ativos públicos.
Contudo, não dá para ignorar a pressão econômica da Faria Lima. Pouco depois da votação, o BTG Pactual divulgou relatório projetando que “um cenário de não privatização da Copasa é improvável” e fixando preço-alvo de 46 reais por ação.
O banco, que também é formador de mercado dos papéis da companhia, aposta na repetição do modelo usado na Sabesp: o Estado vende parte das ações, perde o controle e mantém o ônus político. Analistas do Citi e do Itaú BBA também recomendaram compra dos papéis após a aprovação da PEC.
Como mostrei em outra coluna, o BTG enviou emissários a Belo Horizonte e André Esteves, presidente do banco, se reuniu com Zema em agosto, em São Paulo, para tratar do assunto. Escrevi também que a Faria Lima enxerga a água de Minas como um ativo financeiro.
O Sindágua, que representa os empregados da companhia, tem outra visão. “Não é defesa do emprego do trabalhador, é defesa da qualidade do serviço”, disse o presidente do sindicato, Eduardo Pereira. A entidade lidera vigílias na Assembleia e denuncia que o governo tenta vender na calada da noite o direito do povo mineiro de votar.
O sindicato sustenta que a privatização destruiria o sistema de subsídios cruzados, que permite à Copasa atender 637 municípios, incluindo os menores e deficitários. O fim dessa lógica, alerta o sindicato, aumentaria as desigualdades regionais e colocaria o saneamento fora do alcance de comunidades carentes.
Belo Horizonte e a Região Metropolitana concentram 61,5% da arrecadação da Copasa, o que subsidia o abastecimento em regiões pobres como o Jequitinhonha, o Mucuri e o Norte de Minas.
O Sindágua também aponta exemplos recentes. Em Ouro Preto, onde o serviço foi concedido à iniciativa privada, a tarifa subiu 200% e a prefeitura passou a subsidiar 53% das contas.
Não se pode dizer que a Copasa seja ineficiente, pois já universalizou o fornecimento de água em 99,4% dos municípios que atende e superou a média nacional no tratamento de esgoto.
O caso de São Paulo mostra o que pode vir pela frente. Um ano após a privatização da Sabesp, concluída em julho de 2024, a empresa aumentou a receita, mas registrou alta nas tarifas, mais vazamentos e demissões.
Segundo o sindicato paulista, mais de dois mil trabalhadores foram desligados, e as reclamações por falta d’água e rompimento de rede cresceram significativamente.
Em Minas, analistas do mercado financeiro estimam valorização de até 48% se a empresa seguir o modelo da Sabesp. O problema é que o lucro de poucos vai se traduzir em tarifas maiores, demissões e desmonte da infraestrutura pública.
Zema age com pressa porque o calendário político o favorece. A segunda votação deve ocorrer em novembro, antes do recesso e do início do ciclo eleitoral de 2026. O governador já lançou sua pré-candidatura à Presidência, apesar de as pesquisas mostrarem possibilidades mínimas de vitória.
Se o texto for aprovado em segundo turno na Assembleia, o governo precisará apenas enviar um projeto de lei autorizando a venda das ações.
Em paralelo à ofensiva legislativa, a Copasa criou um prêmio de jornalismo, com inscrições abertas até o final do ano, oferecendo dinheiro para reportagens que tratem de saneamento, meio ambiente e responsabilidade social.
A iniciativa ocorre exatamente no momento em que o governo tenta controlar a narrativa e projetar a estatal como símbolo de eficiência, enquanto avança para vendê-la. É um gesto que soa mais como tentativa de autopromoção do que incentivo ao jornalismo crítico.
Itamar criou o referendo para proteger o patrimônio dos mineiros. Zema tenta extingui-lo para liberar a Copasa ao mercado. Um fez história por defender o controle público; o outro se esconde na calada da madrugada para entregar o que é de todos. Na minha terra, no interior de Minas, chamam isso de covardia.
Mas Zema chama de modernização. Os trabalhadores chamam de golpe. A Faria Lima chama de oportunidade. E o povo mineiro, a quem pertence a água, parece que não vai ser chamado a dizer nada.
