A venda de uma mina de níquel privada brasileira à estatal chinesa Minmetals jogou holofotes sobre a escalada da disputa por minerais estratégicos, colocando o Brasil novamente entre os interesses dos Estados Unidos e da China. A polêmica também evidenciou lacunas regulatórias e a letargia do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para aproveitar a janela de oportunidades em relação ao subsolo brasileiro.
A MMG, subsidiária da estatal chinesa, comprou da Anglo American — empresa sul-africana de capital britânico e com forte presença no mercado chinês — as minas de Barro Alto e Codemin, em Goiás, e os projetos Jacaré (PA) e Morro Sem Boné (MT). Com isso, consolidou o protagonismo das empresas chinesas, que passam a ser responsáveis por até 60% do fornecimento do metal para o mercado mundial.
Essencial para a fabricação de aço inoxidável e baterias de veículos elétricos, o níquel tem reservas globais limitadas. As principais fontes estão na Indonésia, já com forte presença chinesa, Austrália e Brasil.
A transação, consumada no início do ano, chamou atenção inicialmente pela controvérsia gerada por um dos concorrentes. A MMG pagou US$ 500 milhões na aquisição, enquanto a Corex Holding, ligada ao grupo turco Yildirim e sediada na Holanda, alegou ter oferecido US$ 900 milhões pelos ativos, valor 80% maior.
A empresa turca questionou a operação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) afirmando que, com a aquisição, a MMG controlaria 30% do mercado brasileiro de níquel, com risco de prejuízos à segurança de suprimento de países ocidentais.
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A Anglo American esclareceu que suas operações no Brasil produzem ferroníquel destinado à indústria de aço inoxidável, diferente do níquel para baterias. Sua produção anual de 40 mil toneladas representa cerca de 15% da produção global de ferroníquel e menos de 1% da produção total de níquel no mundo.
Além disso, a empresa justificou que a venda das minas responde ao direcionamento de concentrar operações em cobre, minério de ferro premium e fertilizantes. O processo, alega a mineradora, foi competitivo, com propostas de diversas companhias, e a escolha da MMG se deu pela “qualidade geral da proposta”. Além de “pagamento inicial significativamente maior”, as condições analisadas sob critérios de governança corporativa foram “mais realistas”.
No fim de agosto, o Cade oficializou a investigação para apurar se as companhias envolvidas deveriam ter notificado o órgão sobre a compra. O desfecho pode determinar a aplicação de multa de até R$ 60 milhões e iniciar um procedimento administrativo sobre concentração de mercado.
“Vai haver uma série de discussões jurídicas: se o mercado é global, se o caso configura domínio de mercado, se pode gerar abuso econômico”, explica Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior e consultor. “Não será nada simples e o julgamento, inclusive, deve servir como um paradigma para casos futuros.”
Polêmica traduz rearranjo global do setor
O pano de fundo do caso envolve aspectos regulatórios e geopolíticos que ultrapassam as fronteiras nacionais.
Internamente, a empresa turca ainda acionou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para investigar se houve violação de normas que restringem a compra de terras rurais por estrangeiros, já que os ativos minerários se localizam em áreas sensíveis nos três estados.
Como o Brasil não tem um órgão específico para avaliação de investimentos estrangeiros, o caso está sendo analisado sob as perspectivas da concorrência e do interesse público pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Paralelamente, a Corex Holding apresentou uma petição na União Europeia (UE), alegando que a contestação “contribui significativamente para reduzir a dependência da UE de capacidades de refino concentradas, particularmente em meio a desafios geopolíticos e de mercado em curso”.
O setor siderúrgico americano, por meio do Instituto Americano do Ferro e do Aço (AISI), manifestou preocupação ao governo dos Estados Unidos.
“Esse debate todo configura um rearranjo global no setor de minerais estratégicos”, diz Barral. “A disputa por minerais críticos e terras raras está envolvendo o mundo todo, principalmente na disputa entre Estados Unidos e China, e a tendência é que se intensifique.”
Governo nega participação na venda à China
Com a repercussão do assunto nas redes sociais e críticas à suposta “venda do Brasil aos chineses”, o governo Lula se apressou em declarar que não teve participação na transação. Em nota, o Ministério de Minas e Energia afirmou ainda que a União não possui participação acionária no conglomerado privado britânico.
A confusão dos internautas pode ser explicada. O que acontece é que a Constituição estabelece que os direitos de exploração mineral são outorgados pelo Estado — e não por uma empresa detentora das concessões. Mas a empresa é quem decide a quem vender os ativos.
Assim, o que houve, na prática, foi apenas a transferência das concessões outorgadas pelo governo federal à Anglo American para o controle de uma subsidiária de uma estatal chinesa.
“No Brasil, o subsolo pertence à União”, explica Frederico Bedran Oliveira, sócio do Caputo, Bastos e Serra Advogados e especialista em mineração. “Qualquer empresa que requer primeiro uma área e demonstra capacidade técnica e econômica recebe a concessão de lavra.”
“Isso significa que as empresas estrangeiras operam no país por meio de subsidiárias brasileiras, enquanto o governo atua apenas na regulação e aprovação das concessões e não interfere em questões comerciais.”
Exploração de terras raras exige capital de risco
Barral destaca que o Brasil praticamente não impõe restrições significativas para exploração do subsolo, exceto em casos específicos como aquisição de terras por estrangeiros em zonas de fronteira e exploração de urânio.
“Nos Estados Unidos, por exemplo, há diversas barreiras, especialmente quando se trata de empresas estratégicas, e as restrições são ainda mais rigorosas para investidores da China”, diz. “Aqui não existe nada semelhante, apesar da intensificação da disputa global.”
Para Bedran, no entanto, a postura diplomática aberta do Brasil — que aceita investimentos de qualquer nacionalidade — é positiva. “Favorece a diversificação dos players no setor mineral, um dos principais objetivos da política mineral brasileira”, afirma. “Quanto mais empresas, melhor.”
Apesar do grande volume de reservas de metais estratégicos, ressalta o advogado, desenvolver projetos exige capital de risco. “Para etapas de pesquisa, chamada de exploração mineral, se você não tiver capital de risco, não consegue caminhar. E no Brasil não há capital de risco.”
É o caso específico de terras raras fundamentais para a fabricação de ímãs permanentes, usados em motores elétricos. A demanda crescente abre uma janela de oportunidades para o país. Mas os desafios para concretizá-las vão além da legislação vigente.
É um mercado relativamente novo no país: até cerca de três anos atrás, pouco se conhecia sobre o potencial brasileiro nesse tipo de commodity, porque se trata de um novo padrão de depósito. “Hoje, apesar da China dominar mais de 60% da produção mundial, já se sabe que o Brasil possui reservas significativas”, afirma.
Segundo relatório mais recente do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), o Brasil tem a segunda maior reserva de terras raras, com 21 milhões de toneladas, atrás da China, com 44 milhões de toneladas.
Desafio é dominar a tecnologia industrial
Existem várias fases intermediárias, a partir da extração das terras raras, para se chegar ao produto final. O processo começa com a produção de uma mistura de óxidos dos depósitos — normalmente seis dos 17 elementos existentes. A etapa seguinte é a separação desses óxidos, que depois passam pela fase de metalização para a formação de ligas, e, por fim, pela fabricação dos ímãs.
Atualmente, quase a totalidade da produção vai para o mercado chinês. No primeiro semestre, foram 479 toneladas, ao valor total de US$ 6,7 milhões, o que representa três vezes o total exportado em 2024, segundo o Centro Empresarial Brasil-China.
O desafio brasileiro está no domínio tecnológico para agregar valor ao produto destinado à exportação, como faz a China. “Temos tecnologia apenas em escala laboratorial, não em escala industrial”, afirma Bedran. “Hoje, o domínio desse conhecimento está concentrado em países como Estados Unidos, algumas nações europeias e, principalmente, a China, responsável por cerca de 90% do mercado de produtos acabados.”
Há mais de três dezenas de projetos em pesquisa sobre as terras raras em andamento. Um dos mais avançados é o da Serra Verde, em Goiás. Além dele, outros empreendimentos estão em estágio de implantação, classificados como pré-operacionais, e que podem entrar em operação nos próximos dois ou três anos.
Para Bedran, o caminho é longo. “Precisamos agir de forma gradual: abrir minas, iniciar a produção e, aos poucos, avançar para etapas mais sofisticadas de processamento”, acredita. “O ideal é fornecer produtos acabados, mas é preciso seguir passo a passo.”
Brasil pode perder janela de oportunidade
Essa visão tem orientado as interlocuções do segmento mineral com os ministérios responsáveis e parlamentares. “Temos mostrado em que etapa estamos, o que podemos alcançar e como o Brasil pode se posicionar nesse rearranjo global”, explica Bedran, que representa algumas empresas do setor.
Mas ainda não há, segundo ele, empenho do governo ou do Legislativo. “Uma política tem que ser mais rápida, manter a segurança jurídica, a habilidade regulatória e a previsibilidade, mas conseguir destravar a implantação dos projetos. E isso ainda não foi sinalizado de forma efetiva”, afirmou.
Atualmente, tramita no Câmara um projeto de lei (2780/2024) que busca posicionar o Brasil como líder na produção e transformação das terras raras e minerais críticos, atraindo investimentos e fortalecendo a segurança energética nacional.
Sob a relatoria de Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), a ideia do texto é fomentar a pesquisa, a lavra e a transformação sustentável por meio de incentivos fiscais e do burocrático processo de licenciamento ambiental.
O governo federal chegou a sinalizar ainda em 2024 uma política nacional para minerais críticos a ser apresentada na COP30 (Conferência Ambiental no Pará, em novembro), mas a ausência de prioridade explícita no governo pode ter deixado o projeto à espera de um momento político mais propício.
Outros PLs em tramitação – como o PL 2197/2025, no Senado, que exige beneficiamento de terras raras antes da exportação – podem ter contribuído para dispersar a atenção legislativa.
“Sem políticas céleres, o Brasil corre o risco de perder uma importante janela de oportunidade”, alerta Bedran. “Se a gente não souber aproveitar essa demanda dos metais críticos, esses projetos ficarão no papel. Vamos morrer com riqueza enterrada no chão.”