Trump, o MAGA e a supremacia americana – Opinião – CartaCapital

O estilo Trump, autoritário e histriônico, tem sido responsável por obscurecer os aspectos mais profundos do seu projeto político-econômico, sintetizado na palavra de ordem “Make America Great Again (MAGA)”. Seus objetivos são ambiciosos: retomar a hegemonia produtivo-tecnológico da economia americana e promover a recuperação e a ampliação de empregos de boa qualidade. Como esses problemas são atribuídos principalmente ao tipo de inserção dos EUA na ordem internacional, a reestruturação dessa última constitui um objetivo paralelo.

De inegável apelo popular e do agrado de algumas elites, o projeto padece desde logo de um problema maior: seu diagnóstico. No afã de encontrar culpados pela perda de liderança tecnológica da indústria americana, ou pela profunda deterioração social das últimas décadas, o trumpismo recorre a um velho expediente dos movimentos fascistas: a responsabilização de inimigos externos e imaginários. Assim, a ordem internacional, por meio do surgimento de aliados parasitas e rivais desleais, ou os imigrantes que invadiram os EUA, são eleitos como os responsáveis pelo declínio americano.

É curioso como na análise das origens e das determinações dos problemas que afligem a sociedade e a economia americanas, o processo de financeirização e globalização que teve como epicentro e motivação os interesses do Estado, das grandes corporações e do capital financeiro americanos é ignorado. Por sua vez, a complexidade das implicações desses processos e de suas interrelações são ultrassimplificados. É o que se deduz, por exemplo, das ideias de um dos seus principais teóricos, Stephen Miran, atual presidente do Conselho de Consultores Econômicos da Presidência dos EUA.

De acordo com Miran, a estrutura de tarifas que rege o comércio internacional configuraria um campo de jogo desnivelado e desfavorável aos EUA. Ou seja, o resto do mundo, aliados e não aliados, praticaria níveis elevados de tarifas sem reciprocidade dos EUA. A partir dos dados da OMC, calcula a tarifa média efetiva dos EUA em 3%, contra 5% da União Europeia e 10% da China, com níveis mais elevados ainda nos países em desenvolvimento. E isto seria decorrente da generosidade americana e da herança do período da Guerra Fria. Mas cabe indagar, desde logo: qual a postura dos EUA na OMC no que se refere aos acordos envolvendo o Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) ou o Trade Related Investment Measures (TRIMs) — ou seja, nas questões que dizem respeito à tecnologias mais avançadas e o seu controle?

As questões postas acima nos levam a refletir sobre o real significado das teses trumpistas e do seu anacronismo. A estrutura tarifária vigente entre países, mesmo que possa guardar correspondência quantitativa com outros períodos históricos, tem significado e implicações distintas. As tarifas desempenharam um papel muito distinto durante o regime de Bretton Woods e no período da globalização. No primeiro, o contexto geopolítico da Guerra Fria e a indisputável supremacia produtiva e tecnológica americana fundou a generosidade de permitir para grupos de países selecionados – Europa em reconstrução primeiro, Ásia ameaçada pelo comunismo posteriormente – acesso privilegiado aos mercados americanos. A globalização mudou substantivamente esse quadro.

O processo de globalização produtiva, também denominado de offshoring, caracterizou-se pela fragmentação de processos de produção importantes a partir das economias centrais, em particular a dos EUA, constituindo as cadeias globais de valor, marca do período pós-1980. O impulso principal para esse processo vem das grandes empresas americanas, que em um primeiro momento buscam, principalmente, os custos salariais inferiores aos vigentes nos EUA.

A China e a Índia beneficiaram-se significativamente desse processo, mas o mesmo se pode dizer dos EUA e de suas empresas. Desde logo, pela redução de custos e pelo aumento da lucratividade, o que alavancou estratégias financeirizadas de governança das empresas por meio de ampliação dos dividendos e buybacks, com a consequente “exuberância irracional” nos mercados acionários. Por sua vez, assistiu-se ao barateamento de bens de consumo, em particular dos eletroeletrônicos, e à inflação baixa e estável por cerca de quatro décadas. A moderação do custo de vida nos EUA viabilizou o regime de salários quase estagnados observado nesse período, ampliando ainda mais a lucratividade das corporações.

Não deixa de ser curioso que os teóricos trumpistas atribuam o processo de regressão social observado nos EUA ao efeito China e à exportação de empregos. É a opinião de Miran, secundado por vários estudos de economistas trumpistas, cuja alegação é a de que o impacto da China no emprego dos EUA estaria, inclusive, subestimado.

Sem negar a importância desse efeito, há nessa argumentação omissões cruciais. Qual o impacto das mudanças tecnológicas, sobretudo daquelas relativas à tecnologia da informação, na organização do trabalho e na destruição de empregos nos EUA? Qual o papel da desestruturação dos sindicatos nos padrões de utilização de força de trabalho e na sua remuneração? Como a financeirização das empresas se reflete nos padrões de reconcentração da renda e da riqueza? Como esse conjunto de mudanças impactou a mobilidade social que constituía o esteio do american dream? Seriam a China e os migrantes de baixa qualificação os responsáveis principais pela desestruturação social dos EUA?

O padrão do offshoring ou da constituição das cadeias globais de valor tem como expressão o que ficou denominado na literatura de curva do sorriso (smile curve).  Na formação de valor de um produto, a atividade inicial, de pesquisa, engenharia, desenho e de alto valor agregado, não é objeto de offshoring, ou seja, permanece sob controle das corporações e nos países centrais. Segue-se a atividade de manufatura propriamente dita, com baixo valor agregado e disseminada por vários países, principalmente os periféricos. A etapa final de comercialização e assistência técnica, de alto valor agregado, também é realizada e controlada pelos países centrais e por suas empresas.

Países como os EUA têm uma inserção peculiar nas cadeias globais de valor. A sua participação nos segmentos extremos da curva do sorriso é intensa e crucial. Ademais, não se posicionam nas cadeias como destino intermediário, mas final, absorvendo as partes produzidas ao longo do processo. Ou seja, sempre mantiveram um monopólio decisivo sobre a produção e disseminação dos processos tecnológicos via atividade de P&D e proteção da propriedade intelectual, o que lhes garante o monopólio. A questão do controle tecnológico foi exacerbada nesse padrão de articulação internacional da produção, daí a importância do Trade-Related Agreement of Intellectual Property Rights (TRIPS) e do Trade-Related Investment Measures (TRIMS) acordados no âmbito da OMC, nos quais não se evidencia nenhuma generosidade americana.

Mas como explicar a perda de liderança produtiva e tecnológica da indústria americana? O declínio relativo dessa indústria está associado diretamente à financeirização, não às cadeias globais de valor — estas, aliás, um subproduto da primeira. Alguns indicadores merecem destaque. Em 2022, a China possuía 34% da capacidade instalada na indústria intensiva em conhecimento e tecnologia; os EUA, apenas 22%. Em apenas vinte anos, a China sai de uma participação equivalente a um terço dos EUA – 7,7% contra 30% – para uma liderança inconteste. Dos dez segmentos que compõem essas indústrias, a participação da China supera os EUA em sete.

A explicação para esse desempenho diferenciado reside, como já assinalado, na financeirização das corporações americanas vis a vis o sistema planejado chinês. A nova governança, configurada na maximização do valor acionário e no curto-prazismo, redefiniu os gastos em P&D dessas corporações, reduzindo aqueles direcionados para a pesquisa básica e ampliando os destinados ao desenvolvimento. Ou seja, menos gastos nas pesquisas que geram inovações mais profundas e mais gastos nos segmentos para a viabilização comercial de produtos e a garantia da posição de mercado. Do ponto de vista quantitativo, os gastos em P&D da China em 2021 – ano do último dado disponível – foram 80% dos americanos, mas eles eram 12% em 2000 e 50% em 2010. Atribuir esse desempenho comparativo a fatores internacionais chega a ser patético.

Na discussão das relações entre globalização produtiva e financeira deve-se rejeitar a falsificação da história proposta por Miran. Segundo ele, os EUA tiveram de carregar um fardo importante, expresso na valorização do dólar e nos efeitos deletérios sobre o déficit comercial e de transações correntes, pelo fato de proverem ao mundo os ativos de reserva imprescindíveis: o dólar e os treasuries. Assim, os EUA só importaram muito porque a sua moeda esteve valorizada por causa da demanda ampla e recorrente do dólar como moeda reserva.

O exame da história mostra que os anos 1970 são marcados por crescente rivalidade monetária entre os países do G7. No âmago da disputa, os recorrentes déficits comerciais e de transações correntes dos EUA e o seu financiamento por emissão monetária ou dívida. É importante frisar que o ajustamento americano para eliminar os déficits implicaria não só a desvalorização do dólar, mas uma recessão e um provável ajuste para baixo no ritmo de crescimento da economia americana. O que de fato ocorreu foi a rejeição a este padrão de ajustamento e a reafirmação da centralidade do dólar. Na verdade, esta foi ampliada pela subida unilateral de juros e pelo aumento da dívida pública, que serviu como lastro ao primeiro momento da globalização financeira nos anos 1980.

O movimento que se segue a essa primeira etapa da globalização financeira envolve a desregulação competitiva das várias contas de capitais do resto do mundo e a crescente importância, a partir dos EUA — com sua moeda dominante e seus amplos mercados financeiros cada vez mais desregulados —, dos fluxos de capitais de portfólio. É a via de mão dupla da diversificação da riqueza financeira do capitalismo, mas que tem como veículo principal o dólar. Quais as vantagens americanas a partir da globalização financeira? O privilégio exorbitante. A partir do status do dólar como moeda reserva do mundo globalizado e da importância incontrastável dos mercados financeiros líquidos e profundos dos EUA, subprodutos da própria globalização, o privilégio exorbitante consiste em: fixação em dólar dos principais preços de bens e serviços transacionáveis; determinação da taxa de juros de referência do sistema globalizado; absorção elástica de capitais externos para financiar déficits, investimentos e a especulação; originação do ciclo da economia global a partir da política monetária americana. Contraposto a esse privilégio exorbitante permanente nas finanças, o que mais chama a atenção é que não há. ao contrário do que dizem os trumpistas, uma tendência contínua de valorização do dólar, mas um movimento cíclico.

Diante dos problemas apontados acima, quais as propostas do trumpismo? Primeiro, construir uma verdadeira muralha tarifária pelo uso generalizado e diferenciado de tarifas cujo objetivo é viabilizar o reshoring da atividade industrial. Em simultâneo, para evitar que o uso do dólar como moeda reserva obstaculize este processo, por meio da sua valorização, a proposta é limitar a globalização financeira. Esta última compreenderia três medidas: a conversão compulsória de títulos do tesouro de várias maturidades em títulos perpétuos; a criação de um fundo soberano lastreado nas reservas em ouro dos EUA, para comprar títulos de outros países e compensar a entrada de capitais; e a criação de um imposto sobre a entrada de capitais nos EUA.

A primeira pergunta que surge é: as medidas tarifárias terão a capacidade de equacionar a perda de densidade do tecido industrial americano e, sobretudo, a liderança tecnológica? Se tudo correr como o otimismo trumpista imagina, esse processo levará alguns anos. Após o impacto inflacionário inicial – com potencial para desestabilizar os mercados financeiros – haverá uma mudança de preços relativos e, sobretudo, uma perda salarial mais duradoura, cuja recuperação dependerá de futuros ganhos de produtividade. A recuperação do emprego será apenas parcial, em razão das mudanças tecnológicas. Por sua vez, o déficit comercial americano também tomará tempo para ser resolvido, aquele da construção da nova capacidade produtiva. Na indústria de alta tecnologia, que depende sobretudo dos gastos em P&D e dos efeitos deletérios da financeirização, os efeitos serão limitados. E cabe perguntar: qual o grau de adesão das grandes corporações transnacionais americanas a esse projeto?

O aspecto no qual as mudanças podem ser mais prejudiciais aos EUA se refere ao status do dólar como moeda reserva. Limitar o acesso ao dólar por não residentes é uma medida antagônica à globalização financeira e ao privilégio exorbitante. Significa jogar areia nas engrenagens da mobilidade internacional de capitais que constitui o fundamento último do poder do dólar enquanto moeda reserva — ademais, limitaria a transmissão do ciclo doméstico ao sistema internacional, levando o primeiro a reduzir a capacidade de mover o conjunto do sistema. O mais grave, porém, é a moratória da dívida pública. Nesse caso, argumenta-se que os aliados serão compensados pela proteção conferida no âmbito da segurança internacional. E, de novo, cabe indagar: como os interesses de Wall Street enxergam essas propostas?

Contudo, argumentam os trumpistas, nada ameaçará o status do dólar, pois não há alternativa a ele como moeda reserva do sistema. Aqui, convém pôr as barbas de molho: os processos de substituição monetária fazem parte da história da moeda, mesmo nos sistemas fechados geridos pelos Estados nacionais. Nos sistemas monetários internacionais, esses eventos são ainda mais frequentes. Nesse sentido, a lenta mas persistente erosão do dólar como ativo de reserva nos anos 2000 indica um processo que pode ser acelerado.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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