“Periferianos, distantes estamos
Eles querem manos, minas, longe do plano
Acesso buscamos, nos mobilizamos
Rapidez precisamos, uma taxa pagamos
Para ter busão, lotação, metrô
Fura fila, teve quem votou, mas não rolou
Povo paga caro, ganha pouco, prejuízô
Uma saída para se locomover é preciso”
(Rincon Sapiência, Transporte Público)
Celebramos em 21 de março o Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial, uma data que rememora não apenas a resistência histórica contra o racismo, mas também a luta pelo direito de circular livremente nas cidades.
O Massacre de Sharpeville, ocorrido em 1960 na província de Gauteng, África do Sul, e a corajosa atitude de Rosa Parks, em 1955, nos Estados Unidos, são marcos simbólicos dessa batalha. Em 21 de março de 1960, o bairro de Sharpeville tornou-se palco de um dos episódios mais brutais da luta contra o apartheid. Naquele dia, mais de 20 mil pessoas reuniram-se para protestar pacificamente contra a Lei de Passe, de 1945, que obrigava a população negra a portar documentos que restringiam seu direito de circular livremente pelas cidades. A proposta era um ato de desobediência civil: os manifestantes não portariam o passe, forçando uma crise no sistema de detenções. No entanto, a polícia abriu fogo contra a multidão desarmada, resultando em 69 mortos e 186 feridos. A Lei de Passe exigia que negros carregassem uma caderneta com informações pessoais e locais de circulação. Esse controle espacial ainda ecoa nas cidades atuais.
Em 1955, Rosa Parks, uma costureira negra, recusou-se a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco em Montgomery, Alabama. Sua prisão foi o estopim para o boicote aos ônibus, liderado por Martin Luther King Jr.
A luta de Rosa Parks não era apenas por um assento no ônibus, mas pelo direito de ocupar o espaço urbano sem humilhações ou restrições. Sua coragem inspirou gerações e evidenciou como a mobilidade urbana é um campo de disputa política. Nas cidades modernas, o transporte público continua sendo um espelho das desigualdades raciais e sociais, com populações marginalizadas enfrentando longos deslocamentos, tarifas abusivas, serviços precários e com o uso majoritariamente para o trajeto casa-trabalho. Essa luta histórica pela mobilidade não se encerrou no passado. Hoje, a racialização dos espaços urbanos persiste, moldando o cotidiano das cidades brasileiras.
A circulação racializada: desigualdades urbanas contemporâneos
Passadas algumas décadas desses eventos históricos marcantes, a racialização dos espaços urbanos persiste, ainda que de forma menos explícita, mas sistemática. Nas grandes cidades brasileiras, a população negra e periférica enfrenta barreiras cotidianas para acessar empregos, serviços públicos e áreas centrais. A segregação espacial é reforçada por políticas setoriais que concentram investimentos públicos em regiões historicamente privilegiadas, enquanto as periferias sofrem com a falta de infraestrutura e transporte digno.
A história do Brasil é marcada por deslocamentos forçados de corpos negros e indígenas, confinados em espaços de exploração e violência. Essa dinâmica não cessou com a abolição da escravidão, mas se reinventou por meio de políticas urbanas que continuam a marginalizar essas populações. A Lei de Terras de 1850, por exemplo, impediu que pessoas negras recém-libertas tivessem acesso à propriedade, empurrando-as para periferias e favelas. Hoje, essa segregação persiste, com territórios negros localizados distantes dos centros urbanos, onde se concentram equipamentos públicos, recreativos e oportunidades.
Outros Navios. Eustáquio Neves. Site SESC São Paulo.
Como bem observou a professora Bianca Freire-Medeiros, a mobilidade assume um duplo papel: é tanto produtora da experiência social quanto uma chave para entender as transformações nas dinâmicas urbanas, nas políticas públicas e nas iniquidades delas derivadas. Nesse sentido, a circulação não se limita ao deslocamento físico, mas reflete e reproduz desigualdades estruturais.
Uma pesquisa do IPEA mostra que negros gastam 20% mais tempo no transporte que brancos, vítimas da precariedade do sistema nas periferias. Enquanto moradores de áreas centrais acessam 70% dos empregos em uma hora de viagem, nas periferias o índice despenca para 30% — retrato cruel da desigualdade na mobilidade urbana.
Nesse contexto, a mobilidade é uma questão de justiça social. O direito à cidade, conceito cunhado por Henri Lefebvre, pressupõe que todos os cidadãos possam usufruir plenamente dos espaços urbanos, independentemente de raça, classe ou origem. No entanto, o que se vê é uma cidade fragmentada, onde o acesso aos bens urbanos é determinado por marcadores raciais e socioeconômicos.
O colapso nos transportes periféricos revela uma assimetria cruel: enquanto o tempo médio de deslocamento casa-trabalho nas regiões metropolitanas saltou de 36 para 41 minutos, nas periferias esse custo temporal é exponencial. Como revela a última pesquisa sobre Mobilidade Urbana no Brasil, publicada pela Confederação Nacional da Indústria, um exemplo marcante aparece nos dados da Pesquisa Origem-Destino de Belo Horizonte, que mostram que os usuários de ônibus — principal modal dos mais pobres — sofreram um aumento de 40% no tempo de viagem na última década, quase o triplo da média nacional. Para a população negra, que compõe 75% dos 10% mais pobres (IBGE), essa sobrecarga significa rotinas exaustivas: de horas diárias perdidas em deslocamentos, tempo que deixa de ser investido em trabalho qualificado, estudo ou simples descanso — a conta mais visível da segregação urbana.
A mobilidade urbana precária, como destacou o geógrafo Milton Santos, perpetua o ciclo de pobreza e a alienação. Sem acesso a empregos formais, serviços públicos de qualidade e tempo adequado para descanso, a população preta e periférica enfrenta barreiras estruturais que precarizam suas condições de vida. Em suas análises, o urbanista Flávio Villaça abordava a dominação social por meio do controle do espaço-tempo, reforçando que a democratização do acesso à mobilidade não é uma questão de conforto, mas de transformação e equidade.
A cidade também é palco de conflitos quando a circulação ultrapassa o trajeto casa-trabalho. Ocupar espaços privilegiados gera repressão, como ações truculentas em manifestações politicas e culturais, ou a abordagem constante de corpos racializados em áreas das elites. Um corpo racializado que ousa ir além da circulação restrita enfrenta violência simbólica e física, sustentando a segregação. Assim, a circulação torna-se um ato político, uma reivindicação de pertencimento e de direito à cidade.
Por uma nova agenda urbana: resistência, transformação e justiça racial
Para transformar essa realidade, é urgente construir uma nova agenda urbana, democrática e antirracista. Isso inclui investimentos em transporte público de qualidade, políticas de habitação que combatam a segregação espacial e a distribuição equitativa de equipamentos públicos nas periferias. Além disso, é fundamental reconhecer e valorizar os movimentos sociais, as iniciativas comunitárias e a rica produção cultural das periferias, que já atuam nessa direção, como os movimentos de moradia e os coletivos de economia criativa e mobilidade urbana.
Novo poder: passabilidade. Maxwell Alexandre. Site Prêmio PIPA
Estudos sobre transporte e consumo destacam as dinâmicas da mobilidade. No entanto, a análise da produção das mobilidades do espaço urbano — sob uma perspectiva marxista — revela como as desigualdades são estruturantes, já que a produção condiciona o consumo.
Outro fator que define as periferias é o excesso de veículos (carros e motos), responsável por colapsos no trânsito. A isso somam-se os subsídios ao automóvel particular, a falta de transporte público de qualidade e a ideologia do carro como símbolo de liberdade e ascensão social, herança do modelo fordista. Essa prioridade ao transporte individual transforma as cidades em palco de congestionamentos e insustentabilidade, com efeitos ainda mais severos nas periferias — onde a população, majoritariamente negra e pobre, sofre com a exposição desproporcional aos impactos climáticos, reforçando o conceito de racismo ambiental.
O povo preto precisa circular para uma vida além do utilitário. É incluir no cotidiano a contemplação de quem circula para sua autoformação, estudo, lazer, recreação e para esbanjar arte na cidade. O cotidiano negro precisa refletir nos espaços como ocupação permanente e transformadora, tal como é seu vai e vem pela cidade. Esse movimento tem de ser por cultura, distração e vivência.
O 21 de março nos convida a refletir sobre o passado e a agir. As histórias de Sharpeville e Rosa Parks mostram que a mobilidade urbana é um campo de luta política, onde se disputam não apenas rotas e horários, mas também dignidade e acesso. Nas cidades contemporâneas, a racialização espacial ainda é uma realidade, mas também um desafio a ser combatido.
Os corpos negros exigem mais do que a liberdade de circular no espaço urbano, e a luta contra a discriminação racial nas cidades não pode se limitar a discursos ou datas simbólicas. Ela exige ações concretas que transformem a estrutura urbana, passem pela descentralização dos investimentos públicos e priorizem os espaços periféricos. Somente assim será possível garantir o direito de todos à cidade. O legado de Sharpeville e Rosa Parks nos lembra que a liberdade de circular é um direito fundamental e que essa luta continua mais necessária do que nunca.