Todas e todos contra o marco temporal e sua mesa 'conciliatória'

A sociedade acompanha as mobilizações indígenas e sabe que reivindicam as terras tradicionais, uma dívida do país com os povos originários. Se 25 anos atrás a população tinha uma imagem amplamente positiva dos indígenas, uma pesquisa recente sugere que uma parte da opinião pública embarcou no discurso da extrema-direita e dos ruralistas sobre o tema, ao passo que quem segue o debate de perto está ainda mais consciente da relevância cultural e ambiental desses povos, bem como do grau de exclusão e violência a que estão sujeitos há cinco séculos. Uma proposta dita “conciliatória” pode piorar esse cenário de desacerto – e isso deveria preocupar todos os brasileiros e brasileiras.

Trata-se de uma minuta de anteprojeto de lei elaborada no gabinete do ministro Gilmar Mendes como parte da comissão especial criada por ele para apreciar as cinco ações relativas ao (anticonstitucionalíssimo) marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), e que está sob análise. 

O texto, apresentado em fevereiro de 2025, viola frontalmente a Constituição ao priorizar interesses econômicos sobre direitos originários, permitindo a mineração em terras indígenas (TIs) mesmo sem consulta adequada ou consentimento das comunidades. Pior: o anteprojeto classifica recursos minerais como de “interesse público”, facilitando a exploração predatória sob a justificativa de “baixo impacto ambiental”, enquanto ignora a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas, que exigem consulta livre, prévia e informada. Além disso, o artigo 22 do anteprojeto dispensa licenciamento ambiental para atividades de “baixo impacto”, abrindo brechas para mineração predatória, e o artigo 31 permite a continuidade de projetos mesmo com rejeição indígena, violando o direito ao consentimento prévio. 

Embora, na 18ª reunião da comissão especial, tenha sido anunciado que as questões relacionadas à mineração não seriam objeto de discussão e que eventuais debates serão conduzidos em comissão específica no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, o tema não saiu da pauta. 

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), retirou-se em agosto da instância, supostamente voltada à conciliação dos diferentes interesses envolvidos, por constatar o total desequilíbrio de forças e a natureza das propostas, como a permanência dos fazendeiros invasores até serem indenizados inclusive pela terra nua (sem benfeitorias), conforme previsto nos artigos 10 a 15 do anteprojeto. Essa indenização amplia custos para a União e inviabiliza demarcações, como no caso Ñande Ru Marangatu (MS), onde R$ 146 milhões foram pagos a não indígenas, valor equivalente a mais da metade do orçamento anual da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para indenizações. 

Três relatores especiais da ONU manifestaram-se contra esse pacote antifuturo. O anteprojeto ainda criminaliza as retomadas indígenas (artigos 82 a 88), proibindo a reocupação de territórios tradicionais e justificando ações repressivas da Polícia Federal e da Força Nacional, ignorando precedentes do STF que reconheceram a legitimidade dessas práticas diante da morosidade estatal, como no caso Raposa Serra do Sol.

O marco temporal, que define a data de 5 de outubro de 1988 como linha de corte para o reconhecimento das TIs, já foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte, mas voltou à discussão nela porque em 2023 os parlamentares, ao derrubar veto presidencial contrário e promulgar a Lei 14.701, aprovaram tal tese. Agora, o anteprojeto de Gilmar Mendes amplia o retrocesso: cria etapas burocráticas para protelar demarcações (arts. 5 a 8), permite que estados e municípios interfiram nos processos desde o início (art. 6º, II e III) e submete as terras indígenas a revisões arbitrárias baseadas em “interesse público” (art. 6º, §13, III), um conceito vago que historicamente serve ao agronegócio e à mineração. O artigo 89, por exemplo, impõe a revisão de demarcações em andamento e um prazo decadencial de um ano para novas reivindicações, violando a imprescritibilidade dos direitos territoriais (art. 231, §4º, da CF).

A tese do marco temporal advém de uma longa disputa acolhida pelo STF no caso Raposa Serra do Sol. Mas o Plenário do tribunal reviu sua decisão de 14 anos antes, alinhando-se à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que respaldou a luta dos Xukuru, de Pesqueira (PE). (Este ano, vale lembrar, a corte declarou o Brasil responsável por violação de direitos dos quilombolas de Alcântara – MA.) Enquanto isso, o anteprojeto insiste em impor prazos decadenciais para revisão de demarcações (art. 14), ignorando erros graves e a imprescritibilidade dos direitos territoriais garantidos pelo artigo 231 da Constituição. A Súmula 473 do STF já assegura que atos inconstitucionais não podem ser protegidos por prazos, mas o texto ignora isso, priorizando a segurança jurídica de grileiros em detrimento dos povos originários.

Trata-se de fazer valer o acordo entre o Estado brasileiro e as sociedades originárias firmado na Constituição Federal de 1988, que reuniu as questões indígenas num arcabouço jurídico consistente. Emblematicamente, o 21º Acampamento Terra Livre (ATL), que levará esta bandeira a Brasília entre os dias 7 e 11 de abril, traz o tema: “APIB somos todos nós: em defesa da Constituição e da vida”.

Um chamado, como se vê, à consciência e à ação. Numa era de iminente catástrofe climática e colapso da biodiversidade, somar-se à luta de quem produz comida de verdade em modos compatíveis com a renovação dos bens naturais indispensáveis à vida – luta essa também dos povos e comunidades tradicionais (PCTs) e dos agricultores/as agroecológicos – é questão de sobrevivência, sem deixar de ser de justiça. O anteprojeto, ao facilitar o licenciamento ambiental para mineração e agronegócio, ameaça justamente esses modos de vida, substituindo o “ouro” da biodiversidade pelo mercúrio da ganância. O artigo 28, por exemplo, permite que a Funai elabore o “plano de consulta” em parceria com empreendedores, esvaziando a autodeterminação indígena e convertendo o direito à consulta em mera formalidade. A verdadeira riqueza, sabemos bem, consiste no solo fértil, na água potável, no ar puro, em fauna e flora exuberantes.

A FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas apresentou um pedido de amicus curiae ao Supremo apoiando integralmente a argumentação da APIB na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.582. Como reforça pesquisa de iniciativa da FIAN com os Guarani e Kaiowá, o reconhecimento e a proteção das terras tradicionais são centrais para a garantia de tal direito, reconhecido no artigo 6º da nossa Carta Magna e consagrado em tratados internacionais como o Pidesc

Se pensarmos no rastro do mercúrio entre os Yanomami e da lama contaminada sobre etnias de Minas Gerais, fica ainda mais evidente o embate entre cobiça e esperança, entre vida e morte. Por isso, ecoamos o chamado do ATL 2025: contra o deserto e o precipício, venha com a gente ocupar as ruas, as redes, os corações e as mentes neste Abril Indígena.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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