Trump assina decreto para adiar por 75 dias o banimento do TikTok – CartaExpressa – CartaCapital

Já no primeiro dia de seu novo mandato, Donald Trump assinou uma série de decretos que estremecem o cenário global. Entre eles, a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde (OMS). A decisão reforçar o enfraquecimento do sistema multilateral e coloca em risco programas fundamentais, como a erradicação da poliomielite e o combate ao HIV/AIDS.

Para a médica Mariângela Simão, ex-diretora da OMS para acesso a medicamentos e produtos de saúde, os EUA subestimam perigos que não respeitam fronteiras. “Expectativa de que um país, por mais rico que seja, vá se proteger sozinho, é de uma ingenuidade imensa”, alerta. “Beira a insensatez”.

Embora veja com preocupação a postura unilateral de Trump, ela também ressalta a força de redes globais e instituições nacionais que, quando bem estruturadas, podem — e devem — resistir a impulsos autoritários e anticientíficos. ”Ainda há espaço para cada país fazer sua parte, para as Nações Unidas continuarem trabalhando.”

Confira os destaques a seguir.

CartaCapital: A OMS poderá, de fato, sobreviver sem o apoio de seu maior financiador?

Mariângela Simão: O perigo das medidas unilaterais, sobretudo quando se trata de um país economicamente forte como os Estados Unidos, é imenso. O mundo é globalizado, as cadeias logísticas são globais e muitos interesses também o são. Um exemplo foi a pandemia de Covid-19. Sem o dinheiro americano, a OMS sobrevive, mas terá perdas. Há programas importantes em risco, como o de erradicação da poliomielite. O vírus ainda circula em um ou dois países, e a doença não foi erradicada como a varíola. Programas como o Pepfar (de combate ao HIV/AIDS), que mantém 26 milhões de pessoas em tratamento no mundo, principalmente na África também sofrem. Coisas assim transcendem fronteiras. A expectativa de que um país, por mais rico que seja, vá se proteger sozinho é de uma ingenuidade imensa, que beira a insensatez.

CC: A China tomaria o lugar dos Estados Unidos?

MS: Acho que não. O próprio Trump alega que a China paga pouco e os EUA pagam mais. Só que o critério para a contribuição obrigatória nas Nações Unidas é baseado em indicadores como a renda. O país mais rico do mundo, naturalmente, tem que pagar mais. E isso dá privilégios dentro do sistema, como o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. De todo modo, quem decide na OMS não é uma só pessoa: o diretor-geral é como um síndico nas relações entre os países na área de saúde.

CC: A saída da OMS pode prejudicar a pesquisa científica dentro dos próprios Estados Unidos?

MS: Os EUA têm uma estrutura científica muito forte e que, em boa parte, depende de recursos do governo, principalmente do National Institutes of Health (NIH). Só que várias instituições, como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) e a FDA (equivalente à Anvisa), estão sob ataque. Essas agências são referência mundial pela qualidade do que produzem. Quando se enfraquecem, prejudicam tanto o próprio país quanto o resto do mundo. Não é apenas a questão da OMS que preocupa. Trump também nomeia pessoas antivacina para cargos estratégicos, como no Health and Human Services (o “Ministério da Saúde” dos EUA), por exemplo.

CC: Esse movimento de radicalização tende a inspirar outros líderes a questionar o papel das Nações Unidas ou, ao contrário, pode gerar uma reação de contenção contra Trump?

MS: Vemos um movimento anticiência crescendo, além de um conservadorismo maior na pauta de costumes. Trump, por si só, não criou isso, mas o fortaleceu. O fato de termos, nos EUA, líderes abertamente antivacina é preocupante. É muito parecido com o que a gente teve no Brasil com o governo passado, cujo presidente falava contra a vacina. As vacinas mudaram o panorama das doenças infecciosas. Quem esqueceu o que foi erradicar o sarampo, quase acabar com a poliomielite? 

A responsabilidade recai sobre os profissionais de saúde e a comunidade científica, que precisam transformar a informação técnica em linguagem mais acessível. Do contrário, as pessoas acabam engolindo qualquer conteúdo raso nas redes sociais. E temos que proteger as instituições americanas que são referência mundial, como o CDC e a FDA, bem como programas bilaterais fundamentais, como o Pepfar. Não é só o Trump que decide: o Congresso também precisa aprovar mudanças.

CC: A previsão é que o Tratado de Pandemias seja concluído em maio. A saída dos EUA pode atrapalhar o processo?

MS: Curiosamente, pode até facilitar. Havia incômodos dos EUA em pontos como “acesso equitativo e compartilhamento de benefícios”, para que todos os países tenham vacina ao mesmo tempo. Esse tratado, se firmado, é vinculante: ou todos seguem, ou dá problema.

Os EUA, no entanto, muitas vezes não assinam, mas cumprem na prática. Eles não aderiram à Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, mas implantaram boa parte das medidas internamente.

Mariângela Simão, médica e ex-diretora assistente da OMS (2017-2022), hoje dirige o Instituto Todos pela Saúde (Foto: Acess to Medicine Foundation/Divulgação)

CC: Trump anunciou que, nos EUA, políticas públicas passam a reconhecer apenas masculino e feminino, ignorando identidades de gênero. Quais os riscos para a saúde LGBT?

MS: Não posso mais falar pela OMS, mas esse tipo de retrocesso também ameaça o financiamento de saúde reprodutiva. Na gestão anterior, ele cortou recursos do Fundo de População da ONU, por exemplo. Nos EUA, a comunidade LGBT e até dentro do Partido Republicano existem grupos que podem reagir. Mas, no nível internacional, isso soma força a um movimento conservador que inclui países muçulmanos e outras nações onde políticas de identidade de gênero e direitos reprodutivos são combatidos. E isso me preocupa muito.

CC: Já se passaram dois anos desde o fim oficial da pandemia de Covid-19. Como você avalia a resposta global? 

MS: Lá no começo, lidávamos com um vírus totalmente novo, sem nenhuma imunidade. Agora surgem outros riscos, como o H5N1, a gripe aviária, que recentemente causou a morte de um paciente nos Estados Unidos. Não diria que seja um perigo imediato, mas é constante, porque esse vírus pode sofrer mutação e passar a se transmitir de pessoa para pessoa, como fez o SARS-CoV-2. Quando a transmissão é direta entre pessoas, o potencial de dano é enorme.

CC: E o que esperar caso surja um novo surto em meio a outro mandato Trump?

MS: Acho difícil que os EUA fiquem totalmente de fora de uma emergência global, porque na hora do sufoco, eles acabam tendo que participar de alguma forma. Mas é fundamental fortalecer as instituições nacionais, independente de quem governa. Vimos muita interferência política no CDC durante a gestão anterior do Trump, e aqui no Brasil tivemos um Ministério da Saúde negacionista. Precisamos de estruturas que sobrevivam a governos reacionários, que protejam a população.

Imagine se, em vez de uma “gripe espanhola”, lidamos com uma “gripe americana” surgida em meio à emergência climática — a tempestade perfeita. As mudanças climáticas estão acontecendo, e há intervenções possíveis para desacelerar esses processos, mas não podemos fazer de conta que não existem. Hoje se fala muito em “uma só saúde”, considerando a relação entre saúde humana, animal e ambiental.

O mundo ficou mais perigoso com a volta do Trump ao poder. Mas ainda há espaço para cada país fazer sua parte, para as Nações Unidas continuarem trabalhando e para a OMS seguir fazendo o que precisa ser feito.

Repost

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *