A condenação de Jair Bolsonaro por racismo não é apenas sobre um ex-presidente ou sobre dinheiro. É sobre um país que ainda se permite rir da dor alheia e normalizar a humilhação de pessoas negras. É sobre entender que o racismo não é detalhe, não é erro isolado, não é piada.
Comparar o cabelo de uma pessoa negra a um “criatório de baratas” não foi um deslize. Foi uma demonstração de poder, uma estratégia de desumanização que se apoia no riso para legitimar a exclusão. Esse riso não se limita ao cercadinho do Palácio da Alvorada; ele ecoa em memes, conversas de amigos, redes sociais, no dia a dia de milhares de brasileiros.
O ex-presidente falava amparado pelo cargo mais alto do país. Cada palavra carregava peso institucional. Por isso, a União também foi responsabilizada. O Estado, que deveria proteger, legitimou a marginalização.
O dinheiro da indenização não paga o que essas palavras representam. Não apaga o medo que crianças negras sentem ao se verem refletidas no olhar da sociedade. Não repara o peso que essas crianças carregam até a vida adulta.
Essas crianças crescem e se tornam jovens e adultos que enfrentam desconfiança constante. Olhares de suspeita. Paradas nas ruas sem motivo. O racismo molda trajetórias. Afeta escola, trabalho, oportunidades. Torna-se uma sombra que acompanha cada passo.
Não é apenas sobre falas isoladas. É sobre uma lógica que atravessa instituições, define políticas, distribui violência de forma desigual. Racismo é sistema. É decisão política. É estrutura que transforma a negritude em alvo de exclusão e violência.
O TRF4 não apenas condenou Bolsonaro. Ele marcou um ponto: o Estado falhou. Quando a presidência legitima o deboche, o racismo deixa de ser pessoal e se torna institucional. É a prova de que o riso pode ser instrumento de poder.
Falas como essas ensinam desprezo. Criam adultos que crescem achando que merecem ser menos. Que se escondem, que se justificam, que andam com medo. Que se veem em cada estatística de homicídio, em cada abordagem policial injusta, em cada oportunidade negada.
Casos históricos reforçam o padrão. A “Rota 66” em São Paulo é exemplo cruel: jovens negros mortos, perseguidos, invisibilizados. O racismo institucional mata, silencia, molda políticas públicas de exclusão. E, enquanto o país finge neutralidade, a violência segue.
A condenação é civil, mas cumpre papel pedagógico. Lembra que a sociedade precisa confrontar sua história, sua hipocrisia, seu silêncio. O riso que antes escondia preconceito agora encontra resistência.
Não foram episódios isolados. Foram declarações recorrentes, com público, com câmeras, com cobertura nacional. Um padrão que transforma o preconceito em espetáculo, que diz: aqui, a negritude é alvo e entretenimento ao mesmo tempo.
O país que se prepara para a COP30 precisa refletir. Não se trata de imagem internacional. Trata-se de coerência interna. Não se pode falar em democracia e justiça social enquanto se permite que o Estado e a sociedade riem da marginalização.
Cada fala racista molda vidas, legitima suspeita e violência, reforça desigualdades históricas. É uma violência que atravessa gerações, que estrutura preconceito e define quem é cidadão e quem é alvo.
O tempo da tolerância acabou. É hora de construir instituições e práticas sociais que não reproduzam a marginalização.
Que não deixem crianças crescerem com vergonha da própria cor, do próprio cabelo, do próprio corpo.
A pergunta permanece: racismo é piada para quem? A resposta precisa ser clara, inequívoca e firme: para ninguém.
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