Na semana passada, o governo Lula encaminhou à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (4.675/2025) que regula as Big Techs no campo da concorrência, com o objetivo impedir práticas abusivas de monopólio. Embora oficialmente não trate de conteúdo das redes sociais ou moderação de publicações, especialistas consideram que o projeto não está imune a usos políticos.
O PL prevê a criação da Superintendência de Mercados Digitais dentro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que passaria a fiscalizar empresas classificadas como de “relevância sistêmica” no mercado digital. O rótulo poderá ser aplicado a plataformas com faturamento superior a R$ 5 bilhões no Brasil ou R$ 50 bilhões no mundo e que apresentem características típicas de grande influência no mercado, como deter grandes volumes de dados ou atuar em diferentes mercados ao mesmo tempo.
Segundo o advogado Daniel Becker, diretor de novas tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, a lei se direciona principalmente a empresas que tenham atividades voltadas a comércio digital, com as características de empresas Amazon, Google, Mercado Livre e Magalu, mas também atinge, ressalta ele, as redes sociais e outros tipos de grandes plataformas que podem ser enquadrados como de relevância sistêmica.
A designação da “relevância sistêmica” das Big Techs será feita por meio de processo administrativo e aprovada pelo tribunal do Cade. Uma vez designadas, essas plataformas estarão sujeitas a obrigações especiais, como não favorecer seus próprios produtos em buscas, garantir que serviços concorrentes possam funcionar dentro da plataforma, oferecer portabilidade de dados e submeter aquisições de startups à análise prévia do Cade.
Na prática, o projeto introduz no Brasil uma versão adaptada da Digital Markets Act, que já está em vigor na União Europeia desde 2023. A ideia é controlar os chamados gatekeepers – plataformas que concentram fluxos de informação e poder econômico.
Maria Gabriela Grings, doutora em Direito Processual pela USP e advogada especializada em Direito Digital, vê a proposta como positiva para evitar abusos das Big Techs. “O foco do projeto são as plataformas que têm presença no que eles chamam de mercados de múltiplos lados, com acesso a grande quantidade de dados pessoais, usados para entender o padrão de consumo de um consumidor. Por exemplo, foi discutido muito já no cenário europeu, e no cenário americano também, o Google Shopping, em que o Google dava preferência às ofertas dele mesmo. Então, você usa o buscador Google e você vê primeiro a oferta do Google Shopping antes de poder ver uma oferta de outra loja. É esse tipo de discrepância que a lei está tentando remediar”, explica.
Os especialistas citam como um ponto positivo para as Big Techs o fato de que o Cade costuma ter um perfil técnico e próximo do mercado. A Superintendência de Mercados Digitais terá um superintendente próprio, indicado pelo presidente da República e aprovado pelo Senado, com mandato de dois anos. Caberá a esse órgão instaurar processos de designação de relevância sistêmica e de imposição de obrigações especiais, além de monitorar o cumprimento das regras e recomendar sanções em caso de descumprimento.
Esta superintendência vai fiscalizar se há autopreferência dentro da plataforma, se a instalação de aplicativos de terceiros em sistemas operacionais é permitida, se há clareza nos critérios de ranqueamento de resultados e se existe interoperabilidade com serviços concorrentes.
Becker ressalta que as empresas precisarão se adaptar às novas obrigações. “Uma das demandas está relacionada à governança algorítmica. Você vai ter que avaliar, por exemplo, se os processos de recomendação automatizados estão gerando alguma barreira à concorrência. A empresa vai ter que fazer prova de que ela tem critérios de governança e mecanismos tecnológicos para que haja transparência em processos de recomendação”, explica.
Risco de uso político contra Big Techs não pode ser descartado, mas a lei tem instrumentos para coibi-los, dizem especialistas
Para Maria Gabriela Grings, o PL dá mais especialização ao Cade na área do comércio digital e cria um ambiente regulatório próximo ao que já é adotado em diversos países. Ela não descarta um uso político da lei, mas considera que o texto, muito parecido com o da legislação europeia, oferece instrumentos para coibir isso.
Na visão de Daniel Becker, a preocupação sobre uso político não se deve tanto ao texto do Projeto de Lei em si, mas no risco de que ele seja instrumentalizado. A proposta prevê que processos de classificação das plataformas como de “relevância sistêmica” ou de imposição de obrigações especiais podem ser instaurados não apenas pelo Cade, mas também por meio de representação de órgãos da administração pública federal. Esse é um dos pontos que levanta dúvidas sobre a possibilidade de acionamentos motivados por interesses políticos.
Fatos recentes fazem a desconfiança aumentar. O governo Lula já tentou avançar em legislações voltadas à regulação de conteúdo online, como no caso do PL 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura. Paralelamente, o STF reinterpretou o Marco Civil da Internet de forma a responsabilizar plataformas por conteúdos de terceiros. Nesse sentido, Becker sugere a necessidade de que as Big Techs fiquem em alerta.
“Quando o projeto fala, por exemplo, em transparência de ranqueamento, haverá exigência sobre os critérios editoriais, para a busca, para o feed… E isso pode gerar uma pressão por neutralidade que pode acabar inibindo certas visões. E há algumas proibições vagas, como a de autopreferência, que pode ser interpretada para questionar determinada escolha editorial. Também há regras envolvendo uma exigência de transparência maior, que podem ter algum impacto. Mas, de novo, não se trata de um risco direto à liberdade de expressão, como no caso do PL das Fake News. Todo o cerne do projeto está na livre concorrência. E as consultas públicas tendem a ser um bom freio”, comenta.
Grings, por sua vez, considera que o desenho institucional do projeto reduz o risco de uso político contra as Big Techs. “A gente nunca pode dizer que um instrumento jurídico não vai ser mal utilizado. Ele é elaborado de uma forma, mas sua aplicação muitas vezes pode ser diferente. Eu acredito que esse risco, aqui, é mitigado justamente pela existência de um processo administrativo prévio tanto na designação das empresas como na aplicação das obrigações. Nesses processos, as empresas terão uma participação ampla. Imagino que até será um processo moroso, pela necessidade de contraditório e de ampla defesa”, observa.
Na própria elaboração do projeto, segundo ela, houve participação ampla de diversos atores, incluindo as empresas interessadas, e as próprias plataformas não se opuseram de maneira contundente ao PL.
O PL 4.675/2025 seguirá agora para análise na Câmara dos Deputados. Como o texto não encontra oposição direta das próprias plataformas digitais, a chance de aprovação é mais alta que a do PL 2.630/2020.