Os ricos fogem de imposto como o diabo da cruz em qualquer lugar. Mas no Brasil, por razões históricas, é ainda pior. Um sistema tributário que concentra renda e gera desigualdade, transforma o País em um paraíso fiscal para endinheirados. Quem conhece os bastidores do fisco não tem dúvidas.
“É mais fácil passar um camelo no buraco de uma agulha do que um rico entrar no imposto de renda.”, ironiza Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, o Sindifisco. “O poder econômico controla a tributação, quem paga imposto de renda no Brasil é assalariado.”
A entidade promoveu nesta terça-feira 16, em Brasília, um debate sobre o sistema tributário. O pano de fundo era a proposta do governo que isenta totalmente os salários de até 5 mil reais, e parcialmente os de até 7 mil, mas aumenta a cobrança sobre milionários. A medida, parada há seis meses no Congresso, tenta cumprir uma promessa de campanha de Lula: colocar os ricos no Imposto de Renda.
“Esse projeto é um pequeno passo no sentido da justiça tributária”, afirmou o secretário da Receita Federal, Robson Barreirinhas, que participou do seminário. “É essencial, é simbólico.” Mais do que simbólico: como o próprio chefe do “leão” salientou, significará uma espécie de 14º salário para muitos trabalhadores.
Está parada porque enfrenta a resistência organizada do 1%. “Há um movimento bélico dentro do Congresso”, afirmou o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que integrou a comissão especial da Câmara encarregada da proposta. Segundo ele, a pressão dos super-ricos explica boa parte da demora. Outra razão é o esforço da extrema-direita em aprovar uma anistia a golpistas, bandeira de Jair Bolsonaro.
Os ricos pagam menos imposto aqui do que nos EUA e na Europa, aponta um estudo internacional
Ainda assim, Barreirinhas lembrou que o governo Lula conseguiu aprovar certas medidas. Por exemplo: a taxação de lucros de investimentos financeiros no exterior e de fundos fechados no Brasil. “Os fundos fechados são paraísos fiscais dentro do País”, disparou.
As duas tributações renderam 20 bilhões de reais ao governo em 2024 e o mesmo montante já acumulado em 2025 – e, contrariando o que apregoavam os críticos, não provocaram fuga de capitais para o exterior. “Eles não têm para onde fugir”, ironizou o secretário da Receita. “Só se mudarem de mala e cuia para um paraíso fiscal.”
A verdade é que os ricos não precisam de exílio. Um estudo apresentado durante o evento por Theo Palomo, pesquisador do Observatório Fiscal da União Europeia, mostrou que milionários no Brasil pagam, em média, 20% de imposto — quase a metade do que pagam os ricos nos EUA (36%) ou na Itália (37%), e bem menos que na França (42%).
O sistema brasileiro tem três características básicas, segundo Palomo. Uma é a regressividade: o peso maior sobre os pobres, pela alta taxação do consumo. Outra é a isenção de IR sobre lucros e dividendos – pagos, em geral a quem já habita o andar de cima. Por fim, há a abundância de benefícios fiscais, em geral concedidos a grandes empresas.
Tudo isso faz com que a desigualdade brasileira, sabidamente alta, seja maior do que se imaginava. A turma do 1% abocanha 27% da renda nacional. Nos EUA, também muito desiguais, o grupo fica com 19%. Na Holanda, com 14%. Na França, com 11%.
“O problema do sistema tributário no Brasil é político, não é econômico”, resume Dão dos Santos. A questão central é: quem ganha com cada regra? “Não é na retórica que vamos convencer os super ricos a pagar mais imposto. É na disputa pela opinião pública.”
Ele lembra que a Constituição de 1988 concebeu o Brasil um Estado de bem-estar social, garantindo direitos via serviços e políticas públicas de saúde, educação, assistência e Previdência. “Estados de bem-estar social custam caro”, diz.
Não demorou, porém, para que os objetivos constitucionais fossem minados pelo neoliberalismo. Em 1989, o governo Sarney mudou o imposto de renda. Das sete alíquotas, sobraram duas. A máxima, que era de 45%, caiu a 25%.
Em 1995, o governo Fernando Henrique Cardoso acabou com o imposto de renda sobre lucros e dividendos pagos por empresas a sócios. O Brasil é um dos raros casos dessa isenção. No ano seguinte, o mesmo governo patrocinou o fim da taxação de exportações, com a chamada Lei Kandir.
Há algumas semanas, a deputada bolsonarista Julia Zanatta (PL-SC) propôs um projeto para extinguir o imposto de renda. “Desde 1988 estamos em dívida com a sociedade”, afirma Dão dos Santos. E há quem ainda queira dar calote na dívida.