Em memória dos 50 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, a Catedral da Sé, em São Paulo, recebeu, na noite deste sábado (25), um ato inter-religioso que recriou a histórica cerimônia de 1975. O evento, organizado pela Comissão Arns e pelo Instituto Vladimir Herzog (IVH), homenageou o legado de “Vlado” e de todas as vítimas da ditadura militar, reunindo centenas de pessoas, que lotaram o local.
A recriação do ato contou com a presença de lideranças religiosas, familiares, jornalistas, autoridades e artistas, no mesmo espaço onde, há meio século, milhares de pessoas desafiaram o regime militar e se uniram em defesa da democracia. Durante o evento, o público entoou palavras de ordem contra a anistia a criminosos da ditadura de 1964 e também aos acusados de coordenar os atos golpistas de 2023.
Ivo Herzog, filho de Vladimir, denunciou o apagamento da história brasileira perpetuado pela Lei da Anistia, ao perdoar os crimes cometidos por militares, como tortura, assassinato e desaparecimento forçado. “A anistia de 1979, por si só, é uma aberração, porque o regime autoritário da época nunca reconheceu que cometeu crimes. Então, como anistiar quem não cometeu crime?”, questionou. A lei é usada ainda hoje para impedir, por exemplo, que torturadores identificados sejam responsabilizados pelos crimes.
Vladimir Herzog era jornalista da TV Cultura e foi assassinado em 25 de outubro de 1975, nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, após se apresentar voluntariamente para prestar depoimento sobre supostos vínculos com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A versão oficial do regime alegava suicídio, mas investigações posteriores comprovaram que ele foi torturado e morto por agentes do Estado.
Ivo Herzog é presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog (IVH), entidade criada em junho de 2009, que atua na preservação da memória do período ditatorial e na promoção dos direitos humanos.

Ao traçar um paralelo com os atos golpistas de oito de janeiro de 2023, Ivo criticou a tentativa de anistia aos condenados por tentativa de golpe, em discussão no Congresso. “A mesma coisa está acontecendo novamente com aqueles que estão sendo julgados pelo oito de janeiro. Eles não admitem que cometeram nenhum crime”, afirmou. A anistia proposta agora por parlamentares bolsonaristas busca impedir a punição de quem atentou contra a democracia brasileira em 2023.
O presidente do IVH também destacou a importância do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 320, que questiona a interpretação dada pelo Judiciário e pelo Poder Público à Lei da Anistia de 1979. A ação, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) em 2014, está sob relatoria do ministro Dias Toffoli e segue pendente de julgamento. “Eu entendo que esse atraso, essa abstenção do ministro Toffoli, infelizmente, é uma cumplicidade com essa cultura de impunidade”, declarou.
Segundo Ivo, o ato busca também sensibilizar o ministro para que leve a ação ao plenário. “A gente não está exigindo que a Lei da Anistia diga isso ou aquilo. Estamos pedindo que o debate seja pautado e isso tem sido negado a nós. Essa luta pela revisão do parecer do STF é uma luta da sociedade”, reforçou.
Presente no evento, o vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, destacou a importância da cerimônia. “A morte de Vladimir Herzog foi o resultado do extremismo do Estado, que, em vez de proteger os cidadãos, os perseguia e matava. Por isso, é essencial fortalecer a democracia, a justiça e a liberdade”, afirmou. Questionado sobre uma possível revisão da Lei da Anistia, Alckmin limitou-se a dizer que “já foram dados bons passos nessa questão”.
Por outro lado, a ministra do Superior Tribunal Militar (STM), Maria Elizabeth Rocha, manifestou-se de forma enfática contra a lei ter anistiado os militares que cometeram crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado.
“Eu sempre entendi que a Lei da Anistia era inconstitucional, seja porque é incompatível com a nossa Carta de 1988, seja porque o Supremo reconheceu que os tratados de direitos humanos têm caráter supralegal. A Lei da Anistia é uma norma ordinária, portanto foi revogada não apenas pela Constituição, mas também pelo Pacto de San José da Costa Rica e pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que classificam esses crimes como de lesa-humanidade, portanto, imprescritíveis e não sujeitos a perdão”, afirmou.
A ministra defendeu ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) fixe uma jurisprudência clara para impedir que crimes dessa natureza sejam passíveis de anistia. E pediu perdão às famílias dos mortos, desaparecidos e perseguidos pela ditadura, em nome do STM.
“Estou presente a este ato para, na qualidade de presidente da Justiça Militar da União, pedir perdão a todos que tombaram e sofreram lutando pela liberdade. Pedir perdão pelos erros e as omissões judiciais cometidas durante a ditadura. Eu peço perdão a Vladimir Herzog e sua família. A Paulo Ribeiro Bastos e a minha família. A Rubens Paiva e à Miriam Leitão e seus filhos. A José Dirceu. A Audo Arantes. A José Genoino e Paulo Vannuchi. A João Vicente Goulart e a tantos outros homens e mulheres que sofreram com as torturas, as mortes, os desaparecimentos forçados e o exílio. Eu peço, enfim, perdão à sociedade brasileira e à história do país”, disse Maria Elizabeth.
Entre as autoridades presentes estavam o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, o deputado estadual Eduardo Suplicy, além de José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e representante das entidades organizadoras. O ex-ministro José Dirceu, a deputada federal Luiza Erundina e o ex-deputado José Genoino, também estavam presentes. Assim como a presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga.
O ato também reuniu artistas e representantes da sociedade civil. A diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, afirmou que a anistia não pode ser um pacto restrito a quem detém o poder. “A anistia precisa ser a resposta que o Brasil ainda deve ao Brasil. Em 1979, foi um pacto de impunidade. Hoje, novamente, certos setores da sociedade reivindicam impunidade, mas nós continuamos dizendo não. Cinquenta anos depois, seguimos aqui para afirmar que aquele tempo não pode voltar”, declarou.
O jornalista Juca Kfouri também ressaltou a importância de preservar a memória de Herzog entre as novas gerações. “É fundamental que o jovem jornalista saiba quem foi o Vlado, conheça sua luta não apenas pela democracia, mas pela excelência da profissão. Os jornalistas precisam abraçar essa causa e não deixar o verdadeiro jornalismo morrer”, disse.
O evento foi encerrado com a exibição de vídeos e a leitura de uma carta de Zora Herzog, mãe de Vladimir Herzog, interpretada pela atriz Fernanda Montenegro. O ato ecumênico contou ainda com o Coro Luther King, que cantou Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque, ao final do evento. A celebração foi conduzida por Dom Odilo Pedro Scherer, a reverenda Anita Wright – filha de Jaime Wright, e o rabino Ruben Sternschein.

Lei da Anistia ainda é tema de disputa
Em 1978, a Justiça reconheceu a responsabilidade da União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog. No entanto, apenas em 2013 a certidão de óbito foi retificada para indicar que a causa da morte havia sido decorrente de lesões e maus-tratos. Neste ano, uma nova correção no documento passou a registrar oficialmente que Herzog morreu de “causa não natural, violenta, provocada pelo Estado”.
Em março de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou seis pessoas envolvidas no assassinato de Herzog, incluindo os médicos legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana, responsáveis pelo laudo falso que atestava suicídio, e ex-integrantes do DOI-Codi.
No entanto, em março de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o arquivamento do processo, amparando-se na Lei da Anistia, que perdoa crimes políticos cometidos durante a ditadura. A decisão foi criticada por entidades de direitos humanos.
Em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog. O tribunal também considerou o país culpado pela violação do direito à verdade e da integridade pessoal dos familiares de Herzog. A decisão representou uma vitória significativa para a família, que havia recorrido à instância internacional em busca de justiça e reparação.
Somente em março de 2025, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por meio da Comissão de Anistia, reconheceu Vladimir Herzog como anistiado político post mortem.
Em junho a família de Herzog firmou um acordo com o governo federal que reconheceu formalmente a responsabilidade do Estado brasileiro pelo crime. O ministro Jorge Rodrigo Araújo Messias, da Advocacia-Geral da União (AGU) assinou um acordo de responsabilização do Estado brasileiro pela morte de Herzog, no qual prevê o pagamento de cerca de R$ 3 milhões em indenização por danos morais, além da manutenção da reparação econômica mensal concedida à viúva, Clarice Herzog. O processo de anistia política só foi concluído pela Justiça em março deste ano.
Em abril de 2024, a Comissão de Anistia já havia concedido o status de anistiada política a Clarice e feito um pedido formal de desculpas em nome do Estado brasileiro pelas perseguições e violações sofridas ao longo dos anos.
