“Quanto mais um processo judicial avança, mais negro ele fica”, a conclusão é parte de um estudo feito pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) produzido a partir da pesquisa de 3.392 processos que tramitam no estado do Rio de Janeiro, governado por Cláudio Castro (PL).
Segundo o estudo, 69% dos acusados e 77% dos condenados por tráfico de drogas são negros, o que evidencia a uma presença maior da população negra no sistema de justiça. Essa disparidade é confirmada ao ser comparada com a composição racial do estado do Rio de Janeiro, onde 58% da população é negra e 42% é branca.
A seletividade se manifesta de forma contundente nas sentenças de prisão por crimes de drogas: em média, indivíduos brancos condenados recebem uma pena de 810 dias, enquanto réus negros são sentenciados a 1.172 dias, uma diferença de 362 dias, o que representa também um tempo médio de prisão para pessoas negras 44,69% maior.
O levantamento intitulado “Engrenagem seletiva: o tratamento penal dos crimes de drogas no Rio de Janeiro”, revela que o sistema de justiça criminal fluminense funciona como uma engrenagem que determina, , a partir de marcadores de raça, classe e território, quem será punido por qual crime (porte para consumo pessoal, tráfico e associação para o tráfico) e de que forma.
Há uma maior representatividade de pessoas negras em todo o sistema e sua presença vai se intensificando com o decorrer do processo. Elas são 69% dos réus, 75% dos denunciados pelo Ministério Público (MP) e 77% dos condenados.
A palavra do policial
A pesquisa produzida entre 2022 e 2023 indica que a abordagem policial é o filtro inicial do sistema de justiça, já que em quase 90% (89,1%) dos casos de condenação por tráfico de drogas no Rio têm como base a palavra do policial, ou seja, a justificativa para condenação é o uso da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). “Quando citada, ela praticamente garante a condenação e quando omitida, as chances de absolvição crescem bastante”, aponta o levantamento.
A Súmula 70 estipulava que a palavra dos policiais era suficiente para condenar um réu. Em dezembro de 2024, após ação da Defensoria Pública, o texto foi levemente alterado para exigir que os depoimentos estivessem “coerentes com as provas dos autos e fundamentados na sentença”. Apesar da mudança, a essência foi preservada: o testemunho do policial ainda pode ser a principal variável para uma condenação.
“Essa seleção começa na abordagem, a categoria ‘comportamento suspeito’ é um álibi para o racismo na abordagem policial e isso segue sendo verdade, porque nessa pesquisa, mais de 42% dos motivos de abordagem ainda são por comportamento suspeito nas ruas da cidade”, revela Macedo referindo aos casos de uso de drogas baseadas no artigo 28 da Lei de Drogas nº 11.343/2006.
Alarmantemente, 41% dos registros analisados não contêm qualquer justificativa formal para a intervenção policial. Nos enquadramentos por tráfico e associação para o tráfico o “comportamento suspeito” persiste, mas é acompanhado de denúncias anônimas como principal catalisador das ações.
Outro dado destacado no estudo aponta que quase 80% das sentenças que mencionam a ocorrência como sendo em favela ou comunidade acabam em condenação e que pessoas negras têm 43% menos chances de receber oferta de transação penal do que as brancas.
A partir disso a pesquisa mostra que o sistema de justiça carioca não só reflete o racismo estrutural, mas se organiza e se perpetua de uma certa forma, analisa Giovanna Monteiro Macedo, pesquisadora do CESeC. “Ser negro, jovem, pobre e morar em favela leva uma quase certeza de condenação pela Lei de Drogas, os dados são realmente muito alarmantes”, diz.
Invasão domiciliar sem mandado
A pesquisa lança luz sobre a grave violação do direito à inviolabilidade do domicílio. Em 20% dos registros de tráfico e associação, houve entrada na residência do acusado ou de terceiros. Desses casos, apenas 7% contavam com o devido registro de ordem judicial para a invasão. O fator territorial se mostra novamente determinante. Em 19,4% dos casos há menção explícita de favela ou comunidade como local da ocorrência.

Em casos de uso de drogas a menção à favela é rara, presente em apenas 3% dos casos, mas quando se trata de uma ocorrência ligada ao tráfico de drogas o número cresce para 15%. Já nos casos de associação criminosa o registro sobe exponencialmente para 47,6% do total, quase metade das ocorrências.
Considerando os crimes de tráfico e associação em conjunto, 24,9% do total de ocorrências estão explicitamente relacionadas a favelas.
O local da ocorrência se dá como um fator determinante também na decisão final dos magistrados. Quando uma sentença menciona explicitamente que o crime ocorreu em uma favela ou comunidade, a taxa de condenação atinge 76,5%. Esse número sobe para 79,3% em territórios sob domínio de facções criminosas.
“Essa forte correlação entre a menção do território e a condenação sugere que existe no Judiciário uma estrutura subjetiva e pré-fixada, baseada em preconceitos, sobre quem e onde estão as pessoas a serem punidas por tráfico e associação”, conclui a pesquisa.
A substância e a influência na tipificação do crime
O tipo de substância apreendida também influencia diretamente a imputação inicial e a severidade do crime. A maconha é a droga mais comum nos casos de uso (59,6%), enquanto a cocaína é a substância mais recorrente nos enquadramentos de tráfico (79,5%). Tais dados reforçam a percepção de que a classificação entre usuário e traficante não é baseada apenas na quantidade, mas também na natureza da substância, além do perfil socioeconômico e territorial do indivíduo.
A pesquisadora chama a atenção que a maior parte das pessoas que são presas por uso estavam em áreas mais ricas da cidade, mas são pessoas que residem em locais com índice socioeconômico mais baixo. “Ou seja, são pessoas pobres circulando em áreas ricas, que são abordadas como suspeitas e presas por uso”.
Observa-se que, nos registros de uso pessoal, o volume das apreensões são bastante reduzidas, é uma mediana de cerca de três gramas de maconha e um grama de cocaína. Já nos casos de tráfico, associação para o tráfico ou na combinação dos dois crimes, as quantidades são significativamente maiores, chegando às medianas de 87 gramas de maconha e 38 gramas de cocaína.
“O que a gente vê com essa pesquisa é que a gente precisa de uma revisão urgente da lei de drogas, assim. A maioria das pessoas são presas com poucas quantidades de drogas, seja de maconha ou de cocaína, que são as principais drogas que a gente analisou na pesquisa. Então a gente tem um sistema prisional e um sistema de justiça extremamente caro e sobrecarregado por pessoas que estão sendo presas por poucas quantidades de droga”, analisa Macedo.
Alta renda, 90% de absolvição
O mecanismo legal que permite ao Ministério Público (MP) propor uma pena alternativa (como multa ou restrição de direitos) para crimes de menor potencial ofensivo chamado de transação penal não é para todos. Segundo o estudo, esse benefício não é distribuído de forma equitativa: a transação penal é ofertada majoritariamente a réus brancos, que concentram 60,8% dos acordos.
O cenário mais revelador, porém, é o dos réus mais abastados com desfechos ainda mais favoráveis. Nesses casos de réus de alta renda, o MP registra uma taxa de quase 90% de pedidos de arquivamento ou absolvição, indicando que, nesses casos, as atividades do Estado para investigar o crime e aplicar a sanção penal cabível é rara, tornando a transação penal quase irrelevante.
O Brasil de Fato buscou um posicionamento da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro (Sesp-RJ) sobre os resultados da pesquisa, com diversos questionamentos. Até o fechamento dessa reportagem, não houve posicionamento da pasta. A reportagem segue aberta para incluir as informações.
