“Para nós travestis e transexuais, estar na política não é uma opção. É sina.” A professora Duda Salabert (PDT) iniciou sua trajetória política em 2018, ao se lançar como a primeira mulher trans a disputar uma vaga no Senado. A candidatura, inédita e corajosa, abriu caminhos e pavimentou sua eleição à vereança de Belo Horizonte, em 2020. Dois anos depois, ela seria eleita deputada federal por Minas Gerais.
A violência política contra mulheres que desafiam o espaço público não é novidade — e Salabert é um dos alvos mais visados. A deputada divide a rotina parlamentar e o enfrentamento a ameaças constantes, obrigam a contar com escolta até mesmo em compromissos familiares.
“Tive que andar com colete à prova de bala [nas eleições], com carro blindado e escolta armada. A minha família tem que andar com escolta. Há uma viatura na porta da escola da minha filha. Tudo isso por essa violência. Cotidianamente, eu me pergunto se vale a pena continuar na política”
Nesta entrevista a CartaCapital, Salabert reflete sobre a violência política, o sequestro de sua candidatura pelas narrativas da direita e os desafios enfrentados por parlamentares de esquerda em Congresso dominado pelo bolsonarismo.
Confira os destaques a seguir.
CartaCapital: Desde 2019, foram apresentados 437 projetos de lei anti-LGBT no Congresso. Desses, 342 ainda tramitam, mesmo com Lula na Presidência. A esquerda tem gasto mais energia para proteger direitos existentes ou para legislar avanços?
Duda Salabert: Quem gerou a crise? É o modelo econômico aplicado no Brasil nos últimos 20 anos. Esse é o nosso grande problema – e passamos por governos em que se mudava apenas a dosagem da política neoliberal. Nosso maior problema é a crise do neoliberalismo. Temos que buscar outro modelo econômico, outra forma de superar a crise. Dito isso, Bolsonaro é fruto desta crise e ele também a agudizou – trouxe esse fascismo à moda brasileira, que eu chamo de bolsonarismo.
Nem todo mundo que votou no Bolsonaro é fascista, mas o bolsonarismo é um fascismo à brasileira. E como é um fascismo à brasileira, traz consigo essas marcas de ódio a minorias: população negra, LGBT, mulheres, indígenas – e, por isso, esses projetos voltados para a pauta dos direitos humanos ou direitos socioambientais, acabam sendo desacreditados no Congresso, não avançando com a velocidade que exigem.
CC: Mesmo após deixar a Presidência, Bolsonaro elegeu um Congresso que perpetua o radicalismo e o discurso de ódio. Em 2025, a sra. integra o Conselho de Ética. O que esperar do Legislativo diante desse cenário?
DS: O dramaturgo Bertolt Brecht dizia: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. Vivemos uma crise estrutural na América Latina que favorece o crescimento de forças fascistas. Bolsonaro não é o problema, ele é parte do problema. Então, o problema maior é essa ascensão bolsonarista no Congresso a qualquer pauta que trate de direitos humanos ou socioambientais.
Nesse ano, eu farei parte do Conselho de Ética, mas qual foi a última vez que o Conselho de Ética puniu alguém? Acaba sendo um espaço para passar pano para os parlamentares. Não houve melhora alguma no respeito. Pelo contrário, o que a gente é um legislativo cada vez pior, que respeita menos o regimento e que desrespeita questões básicas de civilidade.
Desde que fui eleita, faço parte da Comissão de Segurança Pública. Convido todos os brasileiros a separarem, se possível, um dia para poder assistir às sessões da comissão. É uma experiência antropológica da política brasileira. O que a gente percebe é que está avançando a política do ódio. O ódio como método, o ódio como ferramenta de silenciamento de ataque.
Infelizmente, a Câmara dos Deputados hoje é uma máquina de triturar a nossa saúde mental. Eu tenho medo, sendo muito honesta, quando houve a eleição do [presidente da Câmara] Hugo Motta, eu falei para ele: “Hugo, eu tenho muito receio de ter tiroteio dentro da Câmara”. A violência verbal está escalonando tanto que eu tenho receio de um deputado entrar armado e acabar atirando em outro.
CC: A direita, ao falar contra minorias, evita citar nomes. Mas esse discurso atinge diretamente parlamentares como a sra. Como é, há sete anos, ser oposição e também alvo direto do ódio político?
DS: Para nós, travestis e transexuais, estar na política não é uma opção. É sina, é destino. Nossa identidade já é por si só política. Em 2018, eu me tornei a primeira transexual a disputar o cargo de senadora. Quando eu lanço a minha candidatura, Eduardo e Carlos Bolsonaro divulgaram mensagens de ódio contra mim nas redes sociais. Recebi milhares de ofensas, o Instagram bloqueou a minha conta. Esses grupos começaram a avaliar negativamente a página da escola que eu trabalhava. Mandaram e-mails e telefonemas pedindo a minha demissão. Mobilizaram uma manifestação na porta da escola – só por eu ser quem eu sou e ousar disputar o Senado. Só não fui demitida porque os alunos me defenderam.
Em 2020 saio candidata a vereadora e termino as eleições como a pessoa mais bem votada na história de Belo Horizonte. Após a eleição, três ameaças de morte no meu e-mail de grupos neonazistas, dizendo que iam me matar e transformar a escola que eu dava aula no mar de sangue. Esses grupos seguiram mandando esses e-mails para a escola, pais e docentes com ameaças, e eu terminei sendo demitida.
Criaram um site com métodos para me matar. Usaram fotos da minha filha, de 5 anos, em montagens com ameaças de estupro. Desde então, vivo sob escolta, uso colete e carro blindado. Não posso mais postar fotos da minha filha. E me pergunto: vale a pena continuar?
Apresentei um projeto sobre educação ambiental, com apoio unânime em regime de urgência. Mesmo assim, deputados do PL bloquearam a votação porque foi apresentado por uma pessoa trans. Isso me leva a refletir: qual é meu papel no Parlamento se minha identidade fala mais alto que minhas propostas?
CC: Como impedir que a extrema-direita resuma sua atuação apenas às pautas LGBT e use sua identidade como alvo político?
DS: Apresentei um projeto de resolução para que os vídeos dos discursos na Câmara só possam ser gravados fora do plenário. Dentro, apenas a transmissão oficial. Isso porque deputados usam a estrutura da Câmara para produzir cortes de redes sociais, monetizando conteúdo fora de contexto.
ós estávamos, por exemplo, sobre a saúde mental dos guardas municipais – e 99% do que foi dito no plenário não era sobre o assunto. Era sobre aborto, pessoas trans, transporte, várias outras coisas. Eles querem usar aquele espaço para cortes no TikTok. E isso é péssimo para o debate político. Infelizmente, esse projeto nunca vai ser aprovado, vão dizer que quero censura.
>Não fui eleita para discutir linguagem neutra. Fui eleita para discutir que, por exemplo, 90% das travestis estão na prostituição compulsória, que uma grande parcela delas não conclui o ensino médio. Existem problemas reais, de expulsão ou evasão escolar. Fui eleita para criar políticas públicas e reduzir esses números. Eu quero discutir educação, debater a crise climática – mas esses temas são interditados por uma estratégia de pânico moral.
Assista à entrevista na íntegra: