Em dezembro do ano passado, três pessoas da mesma família morreram em Torres, no litoral do Rio Grande do Sul, após ingerirem um bolo servido durante uma confraternização de Natal. Dias depois, na cidade de Parnaíba, no litoral do Piauí, cinco familiares vieram a óbito após comerem arroz em um almoço de início de ano.
Os casos definitivamente não são os únicos, mas dado o potencial letal, dão a dimensão de um problema que passou a rondar o País: o aumento dos casos de envenenamento.
Dados da Abracit (Associação Brasileira de Centros de Informação e Assistência Toxicológica e Toxicologistas Clínicos), confirmam esta tendência. Só este ano, até julho, foram registrados 7.138 casos de intoxicação por substâncias venenosas, o equivalente a 33 casos por dia. O número é mais da metade do registrado em todo o ano de 2024, que acumulou 10.306 casos.
A maioria dos casos são referentes a intoxicações auto-provocadas, em intenções suicidas; também são expressivas as situações de envenenamento acidentais. Em 2024, foram 3498 tentativas suicidas; 3240 acidentais; sendo minoria os casos de tentativa de homicídio.
De forma geral, os episódios de envenenamento tratam do mal uso de várias substâncias como o trióxido de arsênio (derivado do arsênio, e popularmente conhecido como arsênico) e o chumbinho, utilizados, respectivamente, nos casos de envenenamento no Sul e no Nordeste do País.
O uso do trióxido de arsênio, aliás, tem se tornado mais popular nos casos, e preocupado especialistas, pelo alto potencial tóxico, e gravidade clínica em casos de ingestão. A Sociedade Brasileira de Toxicologia contabilizou, entre 2020 e 2025, 102 casos de envenenamento por compostos arsenicais. O primeiro semestre de 2025 já concentra o maior número de ocorrências do período, com 32 registros, superando os 22 casos notificados ao longo de todo o ano de 2024; em 2023, foram 8 casos.
As instituições ponderam que os casos de alta também podem estar atrelados a um maior reporte dos episódios, antes subnotificados, mas não descartam preocupação iminente diante o cenário.
Especialistas cobram regulação efetiva
À reportagem de CartaCapital especialistas alertaram sobre a necessidade urgente de regular a compra do ‘arsênico’, sobretudo diante a facilidade com que a substância é comercializada pela internet, e utilizada em atos criminosos.
“Infelizmente não existe controle, o que é extremamente preocupante, pois é uma substância tóxica, capaz de matar uma pessoa com uma dose muito baixa”, alerta o docente do Departamento de Química Fundamental do IQ-USP, Reinaldo Camino Bazito.
Segundo a Sbtox, a dose fatal estimada de trióxido de arsênio varia entre 70 e 180 mg após exposição oral. A substância é utilizada para fins industriais, agrícolas, científicos e medicinais, como no tratamento a um caso específico de leucemia; para todos os casos há regulações específicas praticadas por diferentes órgãos de controle.
A facilidade de adquirir a substância, no entanto, diz de uma lacuna regulatória. A legislação brasileira estabelece controles rigorosos para a produção e comercialização de algumas substâncias arsenicais, com destaque para os compostos de arsênio classificados como Produtos Controlados pelo Exército. É o caso do tricloreto de arsênio e o hidreto de arsênio (arsina) que, por serem usados principalmente para fins militares, têm restrições severas para a venda e para o uso. O trióxido de arsênio, no entanto, não está suficientemente tutelado pela legislação atual.
Com o aumento da publicização dos casos de envenenamento, surgiram alguns projetos de lei para pautar a regulamentação. Há pelo menos duas propostas, o PL 985/2025, de autoria do deputado Lula da Fonte (PP-PE), e o PL 1381/2025, de autoria do deputado Gilson Daniel (Pode/ES), que querem proibir a venda de substâncias arsenicais a pessoas físicas, permitindo a comercialização apenas a pessoas jurídicas, devidamente cadastradas pelos órgãos de controle; os projetos também pautam a proibição da venda de substâncias venenosas pela internet.
Para Bazito, a questão não precisaria passar pelo Congresso. “O ideal, no meu modo de ver, era que a substância passasse a ser controlada pelo Exército. Talvez a incidência dos parlamentares pudesse ser nesse sentido”, avalia. “Nós já temos legislação de controle de substâncias químicas, não acho que precisamos de legislação extra, com órgãos extra.”
Procurado, o Exército informou, em nota, que, até o momento, não foi acionado sobre o tema. Acrescentou que, apesar de tóxico, o trióxido de arsênio não é considerado um Produto Controlado pelo Exército, por não atender aos critérios do Regulamento de Produtos Controlados (Decreto nº 10.030/2019).
O que não fazer diante suspeitas de envenenamento
A Sociedade Brasileira de Toxicologia tem atuado mais fortemente para alertar sobre a condução adequada aos casos de envenenamento já que, muitas vezes, eles podem ser confundidos com situações de intoxicação alimentar, por sintomas iniciais correlatos como diarreia, dores abdominais, vômitos, e sudorese. Os sintomas podem ser seguidos por dormência, formigamento nas extremidades, cãibras musculares, confusão mental, convulsões, alterações pupilares, dificuldade respiratória, hálito com odor estranho, lesões na pele e, em casos graves, evoluir para óbito.
O apoio mira tanto a sociedade em geral como os profissionais de saúde, já que os casos de envenenamento via alimentos manipulados com substâncias tóxicas são novos, e ainda carecem de informações de qualidade. O atendimento médico imediato é fundamental para indicar a gravidade do caso e a conduta a ser adotada.
A diretora da Sbtox, Flavia Neri, destacou condutas que não devem ser realizadas, em casos de suspeitas de envenenamento: não provocar vômitos, não oferecer alimentos ou líquidos; e não tentar neutralizar a substância com leite ou outros alimentos.
Em casos suspeitos, a recomendação é a de que as pessoas liguem para a emergência, via 192, ou ainda procurem o Centro de Informação Toxicológica (CIATox) da região. A Sbtox mantém uma página que concentra os contatos dos CIAtox pelo País.