Se nós ainda torcemos o nariz quando ouvimos falar em vinho chinês, talvez seja a hora de atualizar o nosso paladar. Recentemente, a The Economist pediu aos leitores para deixarem de ser esnobes e tratou de explicar didaticamente que a China produz vinhos, com alguns até premiados em importantes premiações internacionais.
Michel Bettane, crítico francês que durante décadas definiu o que era bebível na França, foi ainda mais direto, depois de provar mais de 300 rótulos do país asiático. “A solidez global do padrão enológico na China é de fato superior ao que vemos na França”, concluindo que ele está no fim da vida, mas a inserção chinesa só começou e irá crescer ao longo das próximas décadas.
Durante décadas, a produção vinícola da China foi vista pelo Ocidente com um misto de ceticismo e desdém, muitas vezes associada a vinhos de massa, sem personalidade ou defeituosos. Assim como a liderança na indústria e nas cadeias de energia renováveis, a ascensão chinesa no mundo do vinho não é acidente, mas política industrial. É fruto de subsídios, apoio do governo, parcerias com gigantes europeias e apoio a estudos nos principais centros de enologia do mundo.
O epicentro da qualidade de vinhos na China é Ningxia, localizada no sopé das montanhas Helan, que recebe 3.000 horas de sol por ano, o mesmo que partes da Espanha. O governo regional transformou a produção vinícola em política de Estado, com subsídios, treinamento e até investimento da LVMH. Resultado? Na premiação anual da revista inglesa Decanter, que distingue rótulos do mundo todo, vinhos chineses arrebataram 181 medalhas ano passado; em 2007 tinham sido três. Uma vinícola chinesa, a Silver Heights, tem garrafas vendidas a 250 dólares.
Fazer vinho em Ningxia não é fácil. A The Economist mostra que, assim que a colheita termina em novembro, os viticultores pegam as pás: é preciso enterrar as vinhas antes que as temperaturas despenquem para -15°C. Todo outono, meticulosamente, cada vinha é coberta de terra para protegê-la do congelamento fatal. Na primavera, o processo inverso: desenterrar tudo de novo. Isso tem custo.
O governo transformou a produção vinícola de Ningxia em política de Estado (Foto: Xinhua/Reprodução)
O preço é uma das barreiras do vinho chinês, já que na competição global a Europa tem séculos de tradição. Ganhar o mercado externo não será fácil, e as vendas chinesas também têm obstáculos, já que a cultura do vinho na China ainda é incipiente. Nas estimativas da crítica de vinhos Jane Anson, o mercado interno encolheu de 17 bilhões de dólares para 3 bilhões de dólares em cinco anos. Uma queda de 83%, embalada por pandemia, guerra comercial com os EUA, mudanças geracionais e uma campanha anticorrupção do governo Xi Jinping que acabou com o hábito de presentear garrafas caras entre autoridades.
Mesmo diante das incertezas, marcas globais, como a australiana Penfolds e a LVMH, dona da champagne Moët Chandon e Dom Pérignon, estão investindo pesado, produzindo vinhos locais para contornar tarifas e apostar no terroir chinês.
Em termos de uvas, especialistas notam presença predominante da Cabernet Sauvignon — que ainda cobre 80% dos vinhedos. Também se observa expansão de vinhedos de Marsalan, uma uva que ninguém liga na França, mas virou estrela na China, por adaptar-se melhor ao ciclo mais curto de maturação das uvas. Os produtores chineses agora focam na produção de vinhos finos e que mostrem o terroir chinês.
A transformação de um país produtor de uvas de mesa para um de vinhos sérios levará tempo e exigirá a quebra de preconceitos – além de evidências, taça a taça, da qualidade dos rótulos. Talvez, em breve, não sejam apenas as canetas emagrecedoras que terão espaço nas prateleiras ocidentais. O vinho chinês pode vir logo atrás.
