O videogame da morte – CartaCapital

O conflito na Ucrânia mostra que os drones mudaram a forma de fazer a guerra. Nos últimos dois anos de batalha, 70% das mortes no campo passaram a ser atribuídas à ação desses veículos não tripulados. Eles são pequenos, baratos e muito mais fáceis de construir e de operar quando comparados às máquinas tradicionais de guerra. Enquanto tanques, canhões e aeronaves militares convencionais têm custos altíssimos e dependem de pilotos e de tripulações treinadas ao longo de anos, os drones podem, por outro lado, ser tão simples quanto os modelos recreativos vendidos em qualquer loja, mas convertidos em máquinas letais pela simples acoplagem de um explosivo preso a um clipe plástico. Qualquer pessoa que um dia tenha manipulado um joystick de carrinho de controle remoto ou videogame está apta a manobrar a mais eficiente arma de combate em uso atualmente.

“A onipresença dos drones inviabiliza os métodos de guerra tal como os concebía­mos até 2022”, disse o ex-comandante do Estado-Maior das Forças Armadas e vice-ministro da Defesa da Rússia, Yuri ­Baluevsky, em artigo publicado na edição do bimestre novembro/dezembro da revista russa Global Affairs. ­Baluevsky considera que essas novas máquinas são capazes de tornar o campo de batalha completamente visível, como se todas as opções táticas se tornassem transparentes. Essa visualização absoluta impede o inimigo de lançar mão de manobras clássicas, sendo forçado a dispersar e a reduzir suas próprias unidades militares em terreno.

A respeito da experiência real enfrentada pelas tropas russas na Ucrânia, o general Baluevsky diz que a presença dessas novas máquinas “torna impossível a transferência e a concentração secreta de forças e de recursos nas áreas de esforço primário”. Ou seja, torna-se impossível deslocar colunas de tanques e outros blindados, assim como manter linhas de suprimento que dependam do transporte de veículos, enquanto os céus estão tomados por essas pequenas máquinas que tudo veem.

Na Ucrânia, nota Baluevsky, o uso de drones converteu dezenas de quilômetros contínuos de campos de batalha em zonas mortas, nas quais nada e ninguém pode mover-se sem o risco de ser atacado. Essa realidade de campos desertos foi notada por outro observador militar experiente. O francês Xavier Tytelman, ex-piloto que hoje é consultor privado de defesa, afirma ter visto em Kramatorsk, na região disputada de Donetsky, como a população civil local foi convertida em alvo de drones russos, que destruíram “carros, casas, lojas, tratores, painéis de energia solar, equipamentos de calefação e postos de gasolina”.

Tornou-se comum na Ucrânia que vastas extensões de zonas urbanas passassem a ser cobertas com emaranhados de fios e de malhas, presas a postes e linhas de alta-tensão, para impedir ou dificultar a aproximação de drones russos. Da mesma forma, tripulações de tanques de guerra passaram a envolver seus veículos em verdadeiras gaiolas feitas com cabos, arames, cordas e malhas, tanto para confundir a visualização dos drones que fazem reconhecimento de veículos por meio de programações de Inteligência Artificial quanto para impedir uma explosão em cheio contra a blindagem.

Na Ucrânia, o uso da arma converteu dezenas de quilômetros contínuos de campos de batalha em zonas mortas

Mas a imagem da máquina pequena e solitária, vagando nos céus, é só a ponta do iceberg de sistemas de vigilância e ataque cada vez mais complexos. Por trás dos pequenos drones há outros aparatos sofisticados de captura e de processamento de informações via satélite, que fazem uso do Starlink, o sistema de propriedade do magnata da tecnologia Elon Musk, para concatenar a ação de outros veículos não tripulados, alguns deles capazes de operar com altíssimo grau de autonomia. A maior parte desses equipamentos em funcionamento na Ucrânia depende hoje de um operador humano, mas essa é uma realidade que passa por velozes transformações. O próximo passo é o uso massivo de veículos não tripulados – sejam eles aéreos, terrestres ou marítimos – capazes de navegar, identificar alvos e abrir fogo sem qualquer interferência humana, mesmo no que se chama de etapa crítica da ação, a destruição de um veículo ou instalação, e a morte de um ser humano. Na prática, as guerras terão dentro de pouco tempo a ação massiva de robôs completamente autônomos.

Conflitos como os da Síria e da Faixa de Gaza foram laboratórios de testes para máquinas cujo padrão de autonomia tem se tornado cada vez maior. Além dos EUA e dos associados da Otan, também participam da vanguarda dessa corrida robótica países como Israel, Irã, Rússia e China, que contam hoje com sistemas capazes de operar com diversos drones simultaneamente, em ações coordenadas entre si. Todos esses países se beneficiaram das experiências pioneiras norte-americanas feitas em países como Afeganistão, Paquistão e Somália, nos quais pesados drones de ataque – dentre os quais o mais célebre foi o Predator, usado na era Obama – realizaram operações massivas, muitas vezes confundindo civis com alvos militares, como aconteceu em diversas festas de casamento na caçada a Osama Bin Laden e ao Talibã.

A preocupação com os limites no uso dessas máquinas fez com que o relator especial das Nações Unidas para Execuções Extrajudiciais, o sul-africano Christof Heyns, elaborasse, quando estava no cargo, em 2013, um relatório chamado simplesmente Robôs Autônomos­ Letais, no qual antecipou com precisão vários dilemas vividos hoje, com o emprego massivo de drones. Em seu relatório, Heyns tratou especialmente dos “sistemas de armas que, uma vez ativados, podem selecionar e atacar objetivos sem a necessidade de intervenção humana”. Para ele, esse tipo de equipamento “pode não ser aceitável porque não é possível estabelecer um sistema adequado de responsabilização jurídica, e porque os robôs não devem ter o poder de decidir sobre a vida e a morte de seres humanos”.

Por outro lado, há especialistas que consideram ser um erro a proibição total dos robôs autônomos letais. Eles realçam o fator protetivo que essa tecnologia pode ter para os seres humanos, que deixarão as linhas de frente para operar nos bastidores. Além disso, argumentam que os robôs têm maior potencial de respeitar as leis da guerra, uma vez que operam a partir de comandos estritos, dos quais não se desviam por conta própria.

A história dos conflitos mostra, no entanto, que toda nova invenção bélica serviu, na verdade, para provocar mais destruição e mortes. Além disso, a disseminação dessa nova tecnologia – menor, mais barata e mais simples – tem como efeito colateral o incremento dos arsenais de grupos armados não estatais e até mesmo de meras facções criminosas, como o Comando Vermelho, que, neste ano, no Rio de Janeiro, teve um drone apreendido pela polícia na operação que culminou com o massacre de 121 cidadãos. •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O videogame da morte’



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