
Há 15 dias, estávamos na esplanada dos ministérios com mais de 300 mil mulheres negras em marcha por reparação e bem-viver. Durante os meses que antecederam a marcha, pude observar de perto a articulação do Comitê de Mulheres Negras Evangélicas e Protestantes. Foi muito bonito acompanhar mulheres negras unidas por suas lutas em comum, e não afastadas por suas diferenças.
Mães negras evangélicas e de terreiro perdem seus filhos para a violência de Estado, são alvo do racismo obstétrico, ambiental e de todas as mazelas que o racismo e o sexismo impõem aos nossos corpos. Contudo, existe uma violência que as mulheres de terreiro sofrem que não compartilhamos: o racismo religioso, e temos de conversar sobre isso.
Enquanto marchávamos, eu observei os olhares de aprovação e acolhimento que as marchantes de outras religiosidades direcionavam às nossas faixas e à nossa presença. Os dizeres “Bem-aventuradas aquelas que têm fome e sede de justiça” demonstraram para as demais marchantes que a intenção era somar na luta pelo fim do racismo no Brasil.
Há dez anos compondo fileiras inter-religiosas, sou testemunha de que nem sempre foi assim. Enquanto havia uma resistência no meio cristão de assumir a pauta racial, no meio das religiões afro-brasileiras havia um incômodo em dialogar com religiosos evangélicos que eram seus algozes nos territórios — e sim, existem inúmeros casos em que evangélicos negros violaram espaços de religiões afrobrasileiras, o que torna compreensível a dificuldade deste diálogo.
Contudo, nessa última década, o evangelicalismo brasileiro apontou para um acirramento do racismo religioso e do aumento do discurso de ódio que teve por efeito o levante de milhares de pessoas evangélicas que se colocaram contra tudo o que esse evangelicalismo representa. Pátria, Família e Deus foram mobilizados diuturnamente para atacar toda e qualquer dissidência, seja de gênero, seja de religião, seja de espectro político. E onde há confronto, também há encontro. Nesse confronto, vimos nascer o encontro de mulheres negras evangélicas e de terreiro.
Na contramão da política branca e masculina, o movimento de mulheres negras apontou um caminho para o diálogo e para o estabelecimento de marcos civilizatórios, em que as diferenças são respeitadas e as experiências compartilhadas são evidenciadas na construção de uma sociedade em que todas as pessoas tenham sua dignidade preservada.
Nesta perspectiva, temos que conversar sobre um ponto importante nesse diálogo. O mesmo racismo que nos afeta se manifesta de maneiras diferentes para evangélicas e mulheres de terreiro, e precisamos entender, enquanto mulheres negras evangélicas, que enquanto as mulheres de terreiro não tiverem suas casas respeitadas, suas espiritualidades protegidas e sua cultura preservada, nenhuma de nós estará segura.
Assim, o racismo religioso que afeta as nossas irmãs de terreiro é um problema nosso. Somos nós que temos de enfrentar o racismo religioso que cotidianamente se manifesta em nossas comunidades de fé. Em lugar dos orixás e das entidades afro-brasileiras, o que tem de ser expulso de nossas igrejas é toda a perversidade que faz com que homens escroques se apoderem de nossa fé para galgar poder político e financeiro.
Para que saiamos dos balcões de negociação da fé, em que cada comunidade religiosa tem um valor eleitoreiro e econômico, temos de cortar pela raiz a estrutura racista que sustenta a base deste poder evangélico.
Escrevo para minhas irmãs negras evangélicas, que entendem o peso de ser uma mulher negra, porque acredito que nosso posicionamento de fé e coragem pode proteger nossas irmãs de terreiro e aprofundar os laços de solidariedade que temos construído em busca de uma sociedade em que caibam todas as pessoas. Essa reflexão que faço chama à responsabilidade todas nós que estamos na trincheira do antirracismo: ou assumimos de vez que o combate ao racismo religioso é uma batalha que nós, cristãs, temos de travar ou não vamos ser verdadeiramente livres.
Por fim, neste mês em que o Ocidente cristão tem o hábito de refletir sobre a vida, desejar coisas boas e agradecer pelas conquistas, quero dedicar esse último texto de 2025 ao professor doutor Vagner Gonçalves da Silva, que me acolheu em seu Ilê de forma tão carinhosa e acolhedora, apresentando para mim um mundo que eu não conhecia e que hoje é essencial para que eu entenda o meu lugar na luta antirracista: o meu lugar é lutar para que as religiões afro-brasileiras trazidas por homens e mulheres africanas sequestradas e escravizadas, que atravessaram o Atlântico na diáspora africana forçada, que resistiram a séculos de perseguição, sejam verdadeiramente respeitadas.
Enquanto qualquer manifestação afro-brasileira, seja religiosa, estética, corpórea ou artística, for perseguida ou desrespeitada, não haverá superação do racismo no Brasil. Eu quero estar do lado que luta pelo fim do racismo, espero que todos os cristãos assumam seu lugar nessa luta. Axé!
