Apocalipse dos Trópicos, de Petra Costa, recém estreado na Netflix, pretende abordar um tema muito relevante – e sistematicamente debatido por pesquisadores, jornalistas, ativistas e religiosos: o embricamento entre a ascensão dos evangélicos e da extrema-direita no Brasil. A escolha de personagens centrais e a narrativa apocalíptica, contudo, geram um resultado estereotipado, que desperdiça a oportunidade de levar ao público um olhar que ajude a situar os dilemas da participação pública da religião em sociedades democráticas. Analisar os destaques e os silêncios do filme nos dá a oportunidade de acrescentar um elemento fundamental na equação religião + ultradireita: o papel da mídia e das redes sociais.
O filme é narrado em primeira pessoa pela própria diretora. O grande protagonista, contudo, é o pastor e televangelista Silas Malafaia. Essa escolha limita a compreensão do papel das igrejas evangélicas no governo Bolsonaro e no 8 de Janeiro. O líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo não é o único a tentar influenciar os rumos da política e a participar das alianças que elegeram presidentes de esquerda e de direita nos últimos anos. E a identidade evangélica é muito mais fragmentada, heterogênea e permeada por disputas internas, mesmo entre os grupos das direitas evangélicas, e clivagens distintas.
Malafaia, poderoso graças ao sistema de mídia brasileiro
Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, é um personagem já bem conhecido. Visibilidade conquistada, entre outros fatores, graças ao sistema de mídia brasileiro, altamente concentrado e pouco regulado. De acordo com o Monitoramento da Propriedade da Mídia, nove dos cinquenta veículos de maior audiência no Brasil são de propriedade de lideranças ou instituições religiosas, evangélicas e católicas. Além disso, a programação da TV aberta é recheada de conteúdo religioso. Malafaia, por exemplo, atua há mais de 40 anos na TV aberta.
Outro televangelista de peso, Edir Macedo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, exerce sua influência por meio do grupo Record e do partido Republicanos. O partido foi fundamental na aprovação da Lei 14.408/22, de autoria do deputado federal Alex Santana (Republicanos – BA) e sancionada por Jair Bolsonaro, que legalizou a prática de arrendamento de horário de programação nas emissoras de rádio e TV. Tal prática foi questionada pelo Ministério Público Federal e transforma as concessões públicas em um balcão de negócios.
Lula, ao tomar posse em 2023, não modificou esse cenário. Escolheu um aliado do bolsonarismo, Juscelino Filho (União Brasil – MA), como Ministro das Comunicações, e sancionou a Lei 14.812/2024, que aumenta a concentração da mídia ao ampliar o número máximo de outorgas dos serviços de rádio e televisão de cada concessionário. A proposta foi do deputado federal Marcos Pereira, presidente nacional do Partido Republicanos, pastor na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e ex-vice-presidente da Rede Record.
A visibilidade de Malafaia também se beneficia dos monopólios digitais. O discurso inflamado e polêmico que adotou nos últimos anos se adaptou perfeitamente aos algoritmos das redes sociais das grandes plataformas, que lucram com o acirramento da polarização e estimulam o discurso de ódio. Apocalipse nos Trópicos dá ao pastor uma imagem pública ainda mais fortalecida. Diante do crescimento dos evangélicos no País, é vantagem ser apresentado como representante do pensamento político desse grupo – e capaz de influenciar seu voto.
Mas a influência de Malafaia no meio cristão tem limites e é mesmo muito contestada por parte de lideranças e de fiéis evangélicos. O fiel evangélico, aliás, é apresentado superficialmente como parte da base bolsonarista. Petra Costa confessa seu desconhecimento sobre o mundo evangélico e vai em busca de poucos fiéis para compreender o papel da religião em suas vidas, optando por destacar um fervor religioso que se adequa bem ao enredo apocalíptico, simplificando o ritual pentecostal para reforçar a manifestação de um projeto teocrático para o Brasil. Ao fazer isso, o documentário ignora expressões evangélicas diversas e simplifica o discurso religioso do apocalipse. Na realidade há uma diversidade de denominações e em que sujeitos religiosos são também trabalhadores precarizados, mães-solo, usuários de políticas públicas, vítimas da letalidade policial, entre outros.
Além disso, reduzir o fiel evangélico a pessoas que defendem a prosperidade e o golpismo ou a eleitores que acreditam em fake news e orientam seu voto apenas por motivos religiosos, é ignorar, em primeiro lugar, que os crentes não são uma massa de manobra, e, em segundo lugar, que sua opinião política e seu voto são influenciados também por outros marcadores sociais, como gênero, raça/etnia, classe social e território. Embora evangélicos tenham votado proporcionalmente mais em Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais do que católicos, não há consenso nos estudos científicos sobre a influência das igrejas e lideranças no voto evangélico. E não se pode desconsiderar que o maior segmento evangélico é composto por mulheres negras e pobres, o que complexifica o mapa de votos. Mesmo entre aquelas que votaram em Bolsonaro, pode haver uma recusa a políticas conservadoras como as que condenam a educação sexual nas escolas, como mostra a pesquisa “Mulheres evangélicas para além do voto”, do Instituto de Estudos da Religião (ISER). A pesquisa mostrou também que lideranças midiáticas como Silas Malafaia e Edir Macedo não são as principais referências religiosas das mulheres entrevistadas, diferente do que foi apresentado no documentário.
O papel dos católicos
Outro equívoco do documentário é tratar o bolsonarismo religioso como fenômeno exclusivamente evangélico. Isso apaga a participação ativa de setores católicos na construção da direita cristã no Brasil. Leigos católicos ocuparam importantes posições no governo Bolsonaro, como Angela Gandra, jurista ligada à Opus Dei e Secretária Nacional da Família de 2019 a 2022. Além disso, católicos também integram a Frente Parlamentar Evangélica.
As direitas cristãs não são exclusividade dos trópicos. Em diversas partes do mundo, coalizões entre evangélicos e católicos têm impulsionado projetos autoritários e atuado contra direitos sexuais e reprodutivos, sob a bandeira da luta contra a chamada “ideologia de gênero” — campanha articulada, em muitos casos, a partir do Vaticano e operada por meio das engrenagens da própria democracia: lobby legislativo, ações judiciais, campanhas de desinformação.
Embora os evangélicos sejam protagonistas nas manifestações bolsonaristas, um levantamento do Monitor do Debate Político no Meio Digital (USP) mostrou que, no ato convocado por Bolsonaro em fevereiro de 2024, 43% dos presentes se declaravam católicos, contra 29% de evangélicos.
O documentário até menciona figuras como Dom Pedro Casaldáliga e a Teologia da Libertação, sugerindo que o catolicismo brasileiro se limita à sua vertente progressista, à “opção preferencial pelos pobres”. Essa leitura, contudo, é idealizada e distorce a paisagem real. Durante a ditadura, é verdade que o Vaticano se opôs à Teologia da Libertação, mas foi além: incentivou a ocupação dos meios de comunicação por instituições e leigos católicos, em resposta à perda de fiéis para igrejas pentecostais. Foi nesse contexto que surgiu a Renovação Carismática Católica (RCC), que, em muitos traços ritualísticos, se inspira no pentecostalismo.
O chamado “catolicismo midiático”, termo cunhado pela pesquisadora Brenda Carranza, também alimenta o pensamento da extrema-direita. São bem conhecidas lideranças como o Padre Paulo Ricardo, por exemplo, tem projeção na TV Canção Nova e nas redes sociais, onde atua como ativista contra a “ideologia de gênero” e chegou a defender o armamento da população — em um vídeo, aliás, amplificado por Jair Bolsonaro.
Fé X democracia
Ao ignorar as contradições internas do campo evangélico e católico, e ao retratar os evangélicos como um bloco homogêneo e perigosamente manipulável, o documentário reforça estereótipos — os mesmos que o conservadorismo religioso usa para se vitimizar, alegando uma suposta “cristofobia” ou perseguição aos cristãos no Brasil.
Sim, há um projeto autoritário que se alimenta do apoio de segmentos evangélicos e católicos. Mas compreendê-lo requer mais do que o olhar estreito de uma elite urbana que enxerga a religião apenas como atraso ou instrumento de manipulação. O Brasil é um país profundamente cristão, marcado por desigualdades estruturais e por alianças estratégicas entre grupos de poder. Perder a oportunidade de aprofundar esse debate, como faz Apocalipse dos Trópicos, é ceder espaço para narrativas simplistas — e para os próprios agentes do conservadorismo religioso que o filme pretende criticar.