“Juventude é o futuro”, dizem. Mas qual futuro é possível quando o presente é constantemente negado? Em vez de promessa, a juventude brasileira tem sido tratada como problema. Nas ruas das cidades, nas filas das oportunidades, nas políticas públicas — ou na ausência delas —, os jovens brasileiros, sobretudo os periféricos e negros, enfrentam obstáculos estruturais que os empurram para os cantos invisíveis da sociedade.
Nas metrópoles brasileiras, a juventude vive em uma cidade fragmentada, caracterizada pela justaposição de territórios segregados que emergem a partir de dinâmicas socioespaciais distintas. A geografia urbana expressa, em concreto, a desigualdade social: bairros que concentram equipamentos culturais, segurança e infraestrutura de qualidade em oposição a outros onde persiste a ausência de transporte decente, espaços públicos de lazer e convivência, além das dificuldades significativas para acesso à saúde e à educação.
Quando existem, esses equipamentos frequentemente operam em condições precárias, especialmente as escolas, que lidam com infraestrutura deficiente, carência de recursos e instabilidade de políticas públicas. Nesse contexto, os servidores — em especial os profissionais da saúde e da educação — enfrentam jornadas exaustivas, sobrecarga emocional e falta de reconhecimento institucional, o que compromete não apenas seu bem-estar, mas a qualidade do atendimento oferecido às populações mais vulneráveis.
Essa geografia urbana desigual é atravessada por marcadores de raça, classe e gênero, que determinam quem pode circular com liberdade e quem será alvo de vigilância, suspeição e repressão. A juventude negra, em especial, é sistematicamente controlada e violentada. Em Salvador, segundo a Defensoria Pública da Bahia, 96,9% das pessoas presas em flagrante em 2023 eram negras — majoritariamente jovens, com baixa escolaridade e renda. Um dado que revela não um desvio, mas o funcionamento regular de um sistema seletivo e excludente, em que o Estado chega primeiro com a força, não com proteção.
Na região metropolitana de Belo Horizonte, a desigualdade social se expressa com força particular. De acordo com o Mapa das Desigualdades da RMBH (2021), elaborado pelo Movimento Nossa BH, as mulheres negras das periferias estão entre as mais atingidas por processos de exclusão territorial, econômica e simbólica. Muitas são jovens que vivenciam maternidade precoce, inserção precária no mercado de trabalho e sobrecarga com o cuidado da casa e da família — e, apesar disso, seguem à margem das políticas públicas.
Segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher 2015/2016, jovens negras em situação de pobreza apresentam as maiores taxas de fecundidade entre 20 e 24 anos. Essas mulheres movimentam e sustentam o cotidiano urbano: trabalham, cuidam e garantem a vida, frequentemente sem qualquer reconhecimento. Invisibilizadas e negligenciadas pelo Estado, são tratadas como problema, quando, na verdade, constituem potência e urgência de transformação.
Essa exclusão também se materializa na maneira como a cidade é organizada. A mobilidade urbana — ou a falta dela — se impõe como barreira diária à plena vivência do direito à cidade. Para a juventude periférica, os deslocamentos são longos, caros, exaustivos e inseguros. O transporte público precário, combinado à violência policial, transforma o simples ato de circular em uma experiência de risco. Circular é resistir. Ir à escola, ao trabalho, ao cinema, à festa, ao teatro: tudo exige mais esforço, mais tempo e mais exposição.
Dados da Associação Nacional de Transportes Públicos mostram que os jovens das periferias urbanas são os que mais dependem do transporte coletivo e os que mais sofrem com a descontinuidade de linhas, o aumento das tarifas e o sucateamento dos serviços. Quando o acesso à cidade é dificultado, o que se limita não é apenas o deslocamento físico, mas o próprio horizonte de possibilidades: o direito de experimentar, pertencer, desejar. A cidade nega à juventude periférica o tempo livre, o prazer do encontro, a espontaneidade do uso do espaço.
É preciso dizer com todas as letras: o modelo urbano excludente transforma a juventude em prisioneira de seus territórios. A cidade, que deveria ser espaço de encontro e diversidade, impõe fronteiras simbólicas e concretas que apartam. A ideia de “segurança” é usada como justificativa para barrar, controlar e criminalizar corpos jovens, negros e pobres em espaços centrais.
O jovem periférico é chamado a sair de casa apenas para trabalhar, estudar e — se puder — consumir. O uso do espaço como lazer, protesto ou criação é sistematicamente deslegitimado. Nesse cenário, as políticas públicas para juventude e mobilidade urbana aparecem como ferramentas indispensáveis de justiça social. O Estatuto da Juventude, sancionado em 2013, reconhece o direito à mobilidade, à cidade e ao território como essenciais para o desenvolvimento integral dos jovens. Transformar esses direitos em realidade exige enfrentamento a uma estrutura urbana desigual, racista e pensada para atender aos interesses do mercado — e não da população.
Iniciativas como o Passe Livre Estudantil, a integração tarifária e a requalificação de terminais com serviços públicos e culturais são passos importantes, mas muitas vezes descontinuados por falta de vontade política. Outras propostas, como os Centros de Referência das Juventudes (CRJs) — presentes em estados como Minas Gerais —visam reunir políticas de juventude em um mesmo equipamento público, aproximando, em tese, os jovens das políticas que lhe são direcionadas. Contudo, para que tais iniciativas frutifiquem, é fundamental levar em consideração o território e a política urbana, pois parte expressiva das juventudes enfrenta dificuldades para se locomover nas cidades, inclusive para acessar equipamentos desta natureza, ainda que instalados em regiões tidas como centrais.
Essas experiências, portanto, só têm potencial de transformação se estiverem integradas ao cotidiano dos territórios e articuladas a uma política urbana que promova, de fato, o acesso pleno e democrático à cidade.
Eventos de rap, hip-hop e breakdance, as práticas de skate, parkour e motociclismo, os coletivos de sarau e slam, o grafite, a pixação, bem como os grupos de cicloativistas configuram práticas socioespaciais marcadas pela presença das juventudes, em sua maioria oriundas de territórios periféricos. Essas expressões corporais, artísticas e políticas não apenas ressignificam os espaços urbanos, mas também afirmam identidades, produzem pertencimento e reivindicam o direito à cidade. Ao transformar ruas e praças em palcos de criação e resistência, essas juventudes desafiam estigmas e apontam para modos alternativos e coletivos de viver o urbano em suas múltiplas escalas: do bairro à região metropolitana.
Em meio às novas faces do capitalismo, que aprimoram a exploração do trabalhador e se articulam em torno do rentismo, vê-se enfraquecido o Estado como garantidor de direitos, sendo este capturado, cada vez mais, pela lógica da privatização. Neste contexto, as organizações da sociedade civil, os coletivos culturais e as experiências autônomas resistem — pelas margens das cidades e, muitas vezes, também pelas margens do próprio Estado. Essa atuação é potência, mas também denúncia. A juventude não pode depender apenas de ações pontuais. Precisa de políticas públicas continuadas, financiadas, territorializadas e construídas com a participação efetiva dos próprios jovens. E, sobretudo, de políticas que reconheçam as juventudes como presença política no agora — e não como um “investimento” distante no porvir.
A cidade continua sendo pensada para quem tem carro, crédito e sobrenome. O discurso do “jovem como futuro” vira cortina de fumaça para a negação dos direitos no presente. É necessário superar a lógica tutelar que trata a juventude como transição para a vida adulta. A juventude é um modo de estar no mundo, de sentir o tempo, de desejar rupturas. E também de vivê-las.
Isso exige um novo pacto: urbano, político, cotidiano. Um pacto que reconheça a potência da juventude como força estruturante do agora. A juventude não precisa que falem por ela — ela já está falando, criando, denunciando e inventando saídas. O que falta é escutá-la ativamente, incorporando sua presença nos debates sobre cidade, transporte, cultura e política. Deixar de tratá-la como futuro distante e reconhecê-la como força ativa do presente, é urgente. Se não houver políticas públicas praticadas por, com e para a juventude, a cidade seguirá reproduzindo a exclusão. Se o direito de circular continuar sendo um privilégio, o sonho de uma cidade democrática seguirá estacionado.
Hoje, mais do que nunca, é urgente disputar os sentidos de cidade, de mobilidade e de política com as juventudes e a partir delas. Isso significa garantir acesso, mas também promover escuta e reconhecimento; oferecer políticas públicas, mas também fortalecer espaços de criação e autonomia. É preciso enxergar o corpo jovem não como ameaça, mas como força vital de reinvenção do presente. Porque uma cidade que silencia suas juventudes não apenas apaga vozes — ela compromete o próprio futuro, reproduzindo um território cada vez mais duro, mais vigiado e mais excludente.