O dia em que os vinhos da Califórnia humilharam a França – CartaCapital

Em 24 de maio de 1976, o mundo do vinho sofreu um abalo sísmico. Não das falhas geológicas da Califórnia, mas de uma sala abafada no Hotel InterContinental, em Paris. Prestes a completar 60 anos, o evento, conhecido como “O Julgamento de Paris” até hoje repercute. Mas, como toda lenda, foi polida, romanceada e ganhou as telas e telinhas.

Antes de morrer, em 2021, Steven Spurrier — então dono de uma pequena loja de vinhos em Paris e cérebro por trás da degustação — concedeu o que talvez seja seu relato definitivo ao podcast I’ll Drink to That, do sommelier Levi Dalton. Sem verniz mítico, Spurrier revelou o quanto a revolução que detonou foi, na verdade, fruto do acaso. Ele não planejava mudar a história do vinho. Apenas aproveitou uma oportunidade.

Na conversa, Spurrier desmonta a imagem de estrategista maquiavélico que parte do público passou a associar a ele após o filme. O motivo do evento foi quase banal: celebrar o bicentenário da independência dos Estados Unidos. Nada de cruzada ideológica, nada de revanche histórica.

Um ano antes, em 1975, uma de suas sócias, a americana Patricia Gallagher, havia visitado vinícolas nos Estados Unidos e se surpreendido com a qualidade dos vinhos. Sugeriu que Spurrier cruzasse o Atlântico e provasse tudo in loco. Ele foi. Gostou do que bebeu. E teve a ideia: por que não colocar aqueles rótulos californianos lado a lado com os franceses, no próprio templo do vinho mundial?

Levar os vinhos até Paris, porém, virou uma odisseia, com logística foi digna de uma comédia de espionagem de baixo orçamento.

A salvação inicial veio da própria Gallagher, que liderava um grupo de turistas em um passeio chamado “Tênis e Vinho”. A solução foi transformar os turistas em “mulas”. Spurrier distribuiu 24 garrafas entre as malas do grupo, embrulhadas em roupas sujas. Quase deu errado. A alfândega francesa desconfiou e ameaçou confiscar tudo.

Foi aí que Spurrier improvisou. Diante da barreira burocrática, “vendeu” a história de que aquele não era um evento comercial, mas uma atividade oficial ligada às comemorações do bicentenário americano. Com ares de missão diplomática, conseguiu o carimbo. O Cavalo de Troia entrou em Paris com a bênção da burocracia local.

O golpe seguinte veio de última hora: transformar a degustação em uma prova às cegas. Garrafas sem identificação, juízes sem saber se estavam bebendo França ou Califórnia. Spurrier acreditava sinceramente que os franceses venceriam — e que os americanos sairiam honrados apenas por competir. Os produtores franceses tampouco tinham dúvidas. Havia ali séculos de tradição engarrafados: os grandes nomes da Borgonha e de Bordeaux. Aceitaram sem hesitar.

O que se seguiu foi um desastre cômico para o orgulho gaulês. Spurrier conta como os jurados — a elite do vinho francês, incluindo Aubert de Villaine (do Romanée-Conti) e Odette Kahn, da Revue du Vin de France — começaram a se confundir. Elogiavam a “elegância francesa” de um Cabernet do Napa Valley e criticavam a “robustez excessiva” de um Bordeaux.

Quando as notas revelaram a vitória americana — Chateau Montelena no branco, Stag’s Leap no tinto — a reação foi imediata e visceral. Odette Kahn, ao perceber o “erro”, exigiu de volta suas cédulas de votação. Spurrier, com fleuma britânica, recusou. Ela o acusou de fraude. A imprensa francesa fez silêncio. Mas havia um americano na sala.

George M. Taber, repórter da revista Time, recebeu a lista com a ordem dos vinhos servidos — ou seja, sabia exatamente o que cada jurado estava provando. Ele percebeu que havia história quando um dos especialistas experimentou um vinho branco e decretou: “Isso é definitivamente Califórnia. Não tem nariz”. O vinho era, na verdade, um Bâtard-Montrachet, Chardonnay da Borgonha frequentemente listado entre os maiores brancos do mundo.

Taber escreveu a matéria que entraria para a história, batizando o episódio de O Julgamento de Paris e registrando que “o inimaginável havia ocorrido”. A partir dali, os vinhos do chamado Novo Mundo ganharam status. Não mais curiosidades exóticas, mas protagonistas à mesa.

Essa narrativa, no entanto, colide com o filme lançado em 2008, que retrata Spurrier como um esnobe falido e ressentido. O verdadeiro Steven ameaçou os produtores com um processo. Disse a Levi Dalton: “Não havia como eu aceitar aquilo”. A ameaça só cessou quando aceitaram incluir um aviso de que a obra era amplamente ficcional.

O verdadeiro legado do Julgamento de Paris, como o próprio Spurrier refletiu, não foi a derrota da França, mas a democratização do terroir. Aquele dia provou que o sol brilha e a uva cresce com excelência muito além do Hexágono.

Ao abrirmos hoje um vinho do Novo Mundo, brindamos à persistência de um inglês que driblou a alfândega francesa e, ao se recusar a devolver as notas dos jurados, forçou o mundo a aceitar que o vinho fala uma língua universal. E que, mesmo nas taças, a democracia ainda é o melhor regime do mundo.

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