
Eu escrevo este texto com a respiração entrecortada, porque as notícias não me permitem outro ritmo. Mulheres estão sendo arrastadas, esquartejadas, amputadas, expostas em praça pública como se seus corpos fossem matéria descartável de um país que perdeu qualquer pudor em violentá-las. Escrevo sabendo que qualquer mulher que leia isto — inclusive eu — pode ser a próxima. Não é metáfora. É estatística. É necropolítica aplicada sobre nós.
As imagens recentes — a jovem que perdeu as pernas ao tentar fugir do próprio assassino, a mulher alvejada ao sair de casa, outra espancada até perder os sentidos e quase a vida — não são exceções: são o rosto contemporâneo de um Brasil que naturalizou o desmembramento feminino como linguagem. Este país aprendeu a falar através de mutilações. A dor é sintaxe. A carne partida é discurso.
Quando a violência contra a mulher se torna espetáculo nacional, não estamos diante de casos isolados, mas de um regime permanente de produção de morte. Regime que tem cor: mulheres negras continuam sendo as principais vítimas de feminicídio no país, como demonstra o estudo divulgado pela Câmara dos Deputados. Não é coincidência; é estrutura racista e patriarcal operando em sincronia perfeita.
A cada nova notícia, sinto que escrevo sobre cadáveres que ainda respiram — e que podem ter o nome de qualquer uma de nós.
No campo jurídico, a Convenção de Belém do Pará determinou, há mais de trinta anos, que o Estado tem obrigação de prevenir, punir e erradicar a violência contra mulheres e meninas. A Lei Maria da Penha rompeu o pacto ficcional que insistia em chamar de “briga de casal” o que sempre foi violência de gênero. A Lei 13.718/2018 tipificou a importunação sexual, reconhecendo que há violações que começam como toque, insistência, comentário — e nunca terminam aí. A Lei Mariana Ferrer tentou impedir que o próprio sistema de justiça se tornasse perpetrador, torturando moralmente vítimas em rituais processuais que imitam o suplício colonial. A Lei Carolina Dieckmann reconheceu que nossos corpos também são violados digitalmente, expostos como troféus do sadismo masculino.
Mas nenhuma dessas normas impede que, neste exato momento, uma mulher esteja sendo agredida, descredibilizada, silenciada ou desmembrada em algum canto do país.
O Direito chega sempre tarde demais. O Direito legisla sobre restos. O Direito tenta costurar o que já foi arrancado.
E, no entanto, é preciso escrever — porque cada artigo jurídico é também um ato de testemunho diante de um Estado que insiste em fingir que não vê as pernas sendo arrastadas no asfalto.
Vivemos uma crise de legitimidade ética: o país é incapaz de reconhecer a humanidade das mulheres. Não apenas das mulheres cis, mas também das mulheres trans, das mulheres travestis, das mulheres indígenas, das mulheres negras, das mulheres lésbicas e bissexuais — cada uma delas situada em pontos distintos, porém convergentes, do eixo da vulnerabilização estrutural. A violência opera como pedagogia política: ensina que mulheres não podem existir plenamente sem que isso seja percebido como ameaça. Ensina que poder, quando exercido por nós, é afronta. Ensina que nossa dor não tem valor jurídico suficiente para interromper a máquina de aniquilação.
O que vemos nos noticiários não é apenas violência física. É violência hermenêutica. Violência epistêmica. Violência institucional. Quando um agressor afirma que houve “agressões mútuas”, ele não está oferecendo uma versão alternativa: está mobilizando o imaginário patriarcal que insiste em desconfiar da palavra feminina. Está contando com a cumplicidade histórica das instituições que desacreditam mulheres antes mesmo que elas falem. Como bem descreve Miranda Fricker, trata-se de um sistema de descrédito antecipado que esvazia nossa capacidade de existir como sujeitos de conhecimento.
E conhecer é sobreviver. Nomear é sobreviver. Ser acreditada é sobreviver.
Por isso, talvez o termo mais adequado para nosso tempo não seja sororidade, mas dororidade — conceito de Vilma Piedade que emerge da constatação de que nós, mulheres, compartilhamos uma memória corporal de violência, uma genealogia de sofrimento que nos atravessa desde antes do nascimento. Somos educadas para sobreviver à dor, para normalizá-la, para performá-la como parte do que se espera de nós. O patriarcado não apenas nos violenta: ele nos treinou para não perceber que estamos sendo violentadas até que a mutilação seja irreversível.
Sinto tristeza. Sinto raiva. Sinto medo. Sinto o pânico que se instala no corpo quando percebo que, se eu estivesse no lugar de qualquer uma dessas mulheres, nada — absolutamente nada — garante que eu seria a exceção. Nenhuma titulação acadêmica me protege. Nenhuma conquista profissional me blinda. Nenhuma eloquência técnica me salva do fato de que habito um corpo que o Estado brasileiro considera interrompível.
Escrevo, portanto, como jurista, como negra, como mulher: para registrar que estamos sendo eliminadas diante de uma plateia. para dizer que o sangue que escorre na rua não é acidente, mas política pública de gênero. para denunciar que nossas mortes não são falhas, mas resultados coerentes de um sistema que foi desenhado para permitir que o masculino mate — e sobreviva ileso.
A verdade é que não estamos seguras em lugar algum. O perigo nos escolhe. A próxima pode ser eu. Pode ser você. Pode ser qualquer uma. O país que deveria nos proteger se transformou no palco onde nosso desmembramento é consumido como notícia do dia.
E é por isso que escrevo com a garganta em chamas: porque, enquanto o Estado hesita, nós sangramos. Enquanto comissões discutem, nós somos enterradas. Enquanto leis são invocadas, nós perdemos as pernas. Enquanto o cravo insiste em sair ileso, nós, rosas, continuamos sendo despedaçadas.
Mas escrever é um ato de sobrevivência. É um modo de permanecer.
E é também um modo de lutar — por todas nós, por cada mulher e menina deste país que ousa viver apesar de saber que viver é arriscar perder o corpo.
Que este texto, escrito em estado de emergência, recorde ao mundo que não estamos pedindo proteção: estamos exigindo humanidade.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
