O banquete da crise alimentar e o preço social da comida no Brasil – CartaCapital

A alimentação pode ser considerada a atividade mais imprescindível para a sobrevivência de qualquer animal – humano ou não humano – e possui uma gama de fatores que influenciam sua exequibilidade. Talvez, justamente por ser tão basilar, pode ser também a mais banalizada por aquelas/es que acessam alimentos seguros e de qualidade, em quantidade suficiente e de forma permanente – parte da definição de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Porém, a fetichização do alimento como mercadoria, que contribui significativamente para afastar dos sujeitos a compreensão do caminho dos alimentos e de todos os processos que estão por trás do ato de comer, é um problema generalizado, provocado por um sistema altamente alienante.

Um relatório do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis descreve como os consumidores têm se tornado cada vez mais desconectados e desinteressados dos sistemas alimentares. Essa desconexão é observada em três níveis: físico, que se refere à distância entre a área urbana, onde está a maioria da população, e os locais de produção dos alimentos; econômico, com excesso de intermediários entre quem produz e quem consome, o que também aumenta a cadeia produtiva e gera mais custos; e cognitivo, diminuição do conhecimento sobre como os alimentos são produzidos.

Para celebrar o Dia da Alimentação, mesma data da criação do braço da ONU voltado à Agricultura e à Alimentação (FAO), e levar para o debate público as reflexões sobre a importância de uma alimentação adequada e saudável, é necessário discutir e entender o complexo contexto da alimentação no Brasil.

Fome e obesidade: faces da mesma moeda

O fato de o Brasil ter voltado ao mapa da fome em 2021, com mais de 33 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar, e ter saído do mapa em 2025 exemplifica o que já nos ensinou Josué de Castro: a fome e a miséria são construções sociais. Esta recente conquista, porém, mostra apenas que reduzimos a desnutrição crônica no País, não a insegurança alimentar. Aliado ao fato de que o Brasil produz e exporta toneladas de grãos para diversos outros países, as diversas faces da fome, que permanece como realidade, talvez sejam a forma mais perversa da desigualdade provocada pelo atual sistema de produção.

Por outro lado, temos hoje como realidade outra face perversa do sistema alimentar em que estamos inseridos: a grande prevalência das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) como obesidade, diabetes, hipertensão, entre outras, que possuem grande influência do alto consumo de alimentos ultraprocessados – que não são recomendados pelo Guia Alimentar Para a População Brasileira.

Assim como a fome, o alto consumo desses alimentos também possui maior prevalência em parcela da população. Pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em 2023 analisou o consumo de frutas, hortaliças e alimentos ultraprocessados em diversas cidades brasileiras e identificou que, na população em geral, a incidência de obesidade diminui à medida que o nível de escolaridade aumenta.

No Brasil, o consumo de ultraprocessados matou mais do que homicídios em 2019; são 57 mil mortes devidas à má alimentação, contra 45,5 mil pela violência; e após a pandemia, o consumo deste tipo de produto aumentou consideravelmente, o que demonstra a gravidade e a urgência do tema. 

Em 2019, The Lancet lançou o relatório A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas, afirmando que esses três processos ocorrem de forma simultânea e estão interconectados, enquanto têm causas e efeitos em comum. De 2019 para cá, a obesidade e as mudanças climáticas avançaram consideravelmente e a desnutrição diminuiu de forma muito mais lenta do que o esperado – por trás deste alarmante cenário está o sistema agroalimentar moderno.

Queremos essa modernidade?

Os sistemas alimentares compreendem não somente as etapas do caminho dos alimentos, como também os atores que estão por trás deste processo. Desde a preparação do solo, passando pelas relações de trabalho empregadas na agricultura, as técnicas de produção, os insumos utilizados para o plantio e de onde eles vêm, a escolha (ou a ausência dela) de qual alimento plantar, as questões ambientais envolvidas neste processo, o processamento e o embalo (quando existentes), as formas de distribuição e transporte, considerando as distâncias percorridas e a energia gasta neste processo, os modos de comercialização, troca ou doação, até o consumo final, incluindo a cultura alimentar e o descarte. Além disso, os atores que participam de todos os processos, direta ou indiretamente, como agricultoras/es, atravessadores, feirantes, varejistas, consumidores finais, organizações públicas e privadas, indústrias, legisladores e governantes que criam e interferem em políticas públicas, entre outros, também fazem parte dos sistemas alimentares.

Ao integrarmos uma sociedade urbana-industrial, o sistema alimentar hegemônico compreende também as características desta sociedade, sendo altamente industrializado. O discurso da Revolução Verde com a industrialização do processo produtivo de alimentos se baseou em acabar com o problema da fome, tendo em vista a alta capacidade de produção de alimentos advinda dos avanços tecnológicos. Porém, este complexo industrial “resolveu” a fome, transferindo este problema para a má nutrição e os demais problemas de saúde que ela cria. 

O sistema alimentar hegemônico, também chamado de sistema agroalimentar moderno, pode ser considerado insustentável, por ser altamente especializado, depender de grande quantidade de energia, terra e água, de agrotóxicos e antibióticos; por gerar desmatamento e desgaste do solo; por comprometer a biodiversidade do planeta; influenciar as mudanças climáticas; serem altamente vulneráveis à contaminação em larga escala; e por se estruturarem em relações injustas de trabalho. É essa modernidade que queremos?

Entender a alimentação através dos sistemas alimentares demonstra como o problema da má alimentação não pode ser encarado como uma questão de escolhas ruins por parte da população, tendo em vista a dificuldade em acessar alimentos adequados e saudáveis, seja pelo preço — já que os ultraprocessados recebem diversas isenções fiscais em toda sua cadeia produtiva —, ou por não estarem espacialmente tão disponíveis, uma vez que grandes corporações de alimentos possuem elevado poder e capilaridade no território.

Tal problema precisa ser encarado como uma questão de saúde pública e planejamento urbano, tendo em vista que a urbanização alterou as dinâmicas dos sistemas alimentares, gerando consequências no território, que foi reorganizado para atender determinados interesses. É necessário, portanto, analisar de que forma o espaço urbano industrial é produto e produtor deste sistema agroalimentar moderno, insustentável e gerador de doenças humanas e não humanas.

Por um sistema alimentar justo e saudável

O debate sobre alimentação saudável tem crescido nos últimos anos, mas, muitas vezes, fica circunscrito à ascensão do mercado “fitness”. O que vemos é mais uma vez a apropriação de uma pauta sendo transformada em nicho de mercado, com alimentos ultraprocessados sendo vendidos como saudáveis, mesmo diante dos inúmeros malefícios já conhecidos desse tipo de produção para os seres humanos e para o planeta. A defesa da alimentação saudável não pode ser indissociada do combate ao alto consumo de alimentos ultraprocessados e da luta pela segurança alimentar e nutricional.

Por outro lado, não queremos consumir alimentos in natura produzidos em larga escala pelo agronegócio, por meio de monoculturas envenenadas por agrotóxicos –  o que interfere diretamente na saúde do solo, dos agricultores e dos consumidores. Dessa forma, entendemos que a reivindicação por um sistema alimentar alternativo deve se basear na luta pela reforma agrária e pela soberania alimentar, permitindo que mais agricultores tenham acesso à terra e às políticas de incentivo à produção de alimentos saudáveis. Além disso, é tarefa essencial criar estratégias para promover a agricultura urbana, como incentivos a hortas coletivas e comunitárias, para que as cidades também possam ser espaços de produção de comida, aproximando a produção do consumo, produzindo assim outras urbanidades possíveis.

Além de ampliar as políticas e programas de incentivo à agricultura familiar e à agroecologia no campo e na cidade, é fundamental promover o enfraquecimento de práticas ligadas ao agronegócio e da produção de alimentos ultraprocessados, como cortar subsídios e aumentar a taxação sobre determinados produtos – não adianta promover pequenos estímulos de um lado ao mesmo tempo em que se mantém privilégios do outro…

Por fim, retomamos uma reflexão do pensador quilombola Nego Bispo, que denunciava que o que se compra no supermercado com selo de “orgânico” e não é acessível à maioria da população não pode ser considerado orgânico. Neste sentido, a agroecologia adverte que a defesa por alimentos saudáveis deve também levar em conta as demais lutas sociais, para que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) seja efetivado e que esses alimentos cheguem à população de forma acessível. Dessa forma, além da produção, políticas públicas focadas na comercialização por meio de auxílio na logística e promoção de feiras, sacolões e restaurantes a preços populares, tanto em áreas centrais quanto periféricas da cidade, precisam ser prioridades dos governos locais para combater a fome e a obesidade e construir caminhos para sistemas alimentares mais justos e saudáveis.

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