Nos 55 anos do martírio de Mário Alves – Opinião – CartaCapital

Para Mario de Castro Amaral Kemper

Duas foram as surpresas: a chamada telefônica naquela hora da noite e a voz do outro lado da linha. Não era usual aquele meio de contato. Mário Alves explicaria mais tarde ao companheiro assustado que viera de São Paulo para uma reunião no Rio de Janeiro, e o quadro que o deveria recolher não aparecera. Ele estava em uma churrascaria no Méier, e fui apanhá-lo.

Não tivemos ânimo para discutir a fragilidade de nosso sistema de segurança. Não era o primeiro episódio pondo em risco a vida de um dos principais dirigentes, e, com ela, a organização, mais frágil do que nossas necessárias ilusões permitiam avaliar. Mas a realidade só ficaria clara para nós quando não mais seria permitido nela intervir. Já não éramos, porém, os mesmos das primeiras caminhadas, e de há muito relativizáramos os sonhos de Apolônio de Carvalho – o mais experimentado de nossos quadros parecia reviver na maturidade as esperanças perdidas da revolução espanhola ou os tempos heroicos da resistência francesa com os Maquis.

Dos três principais dirigentes, Jacob Gorender era o mais reservado, tanto nas relações pessoais quanto na avaliação do quadro político, e, ainda distante de qualquer pessimismo, já indicava restrições à linha tática. Era o principal teórico do grupo, e nos deixaria uma das mais importantes contribuições do marxismo à tentativa de compreender a tragédia brasileira. Seu Escravismo colonial nasceu e se firmou como um clássico, que mais cresce de importância quanto mais é lido. Como Apolônio, conheceu a prisão e a tortura, e, como o insurgente que vinha de 1935, a ambas sobreviveu. Tive a sorte de conviver com ele pelo resto de sua vida. Ficava em São Paulo, Apolônio aqui no Rio; Mário operava em circuito que incluía São Paulo, Rio e Niterói, onde moravam Dilma, sua companheira de sempre, e sua filha Lúcia.

Apolônio destacava-se pelo ativismo; Gorender, pela reflexão. Mário é a síntese e o imã, pois unia sua extraordinária vocação intelectual e a exemplar formação marxista a um ativismo sem quartel a que se aplicava na ânsia organizativa: era o filósofo ditando ação, decidido a modificar o mundo, a partir de seu País. E aqui e então a urgência era derrotar a ditadura, mas o grande projeto, projeto e toda a vida, era a revolução social.

Nada obstante a tragédia política, as frustrações coletivas e pessoais, a difícil sobrevivência física, o amargo da vida clandestina sem promessa de sursis, Mário era ameno, cordial, afável e doce, sempre pronto para o diálogo instigante, sem restrição de temas. No debate, convencia pelo rigor do pensamento, mas sua força persuasiva contava com a ajuda de rara simplicidade expositiva. Nada o impedia, porém, de ser firme na defesa de seus pontos de vista.

Nessa noite que passaria em minha casa esquecemos nossa casca de ovo, conversamos sobre filosofia, e muito aprendi. O mundo, acordado pelo Maio de 68 na França (eu escrevia o livro Juventude em crise), refletia sobre o levante estudantil e a irrupção urbana, discutíamos o papel do proletariado e a emergência dos intelectuais. O mundo relia Sartre e tomava conhecimento de Marcuse. Guardo sua rica exposição.

Na manhã seguinte saímos relativamente cedo e fomos cumprir um rol de contatos pré-agendados pelo dirigente, alguns quadros políticos, alguns jornalistas. Naquele então eu lecionava no curso de Direito da Universidade Gama Filho para turmas repletas de policiais e trabalhava como editor na Fundação Getúlio Vargas. Com intervalos que não excediam três meses, era chamado ao DOPS, apresentava-me às 8 horas da manhã no prédio da rua da Relação (de tantas más lembranças), como cobrava a intimação, para ser interrogado no início da noite, após um dia sem água e sem mais nada, a não ser o isolamento que tornava insuportável o lento caminhar do tempo, para ouvir as mesmas perguntas e dar as mesmas respostas. Logo, porém, me acostumei com o rito e me despi de maiores receios. A repressão naquela fase queria simplesmente dizer que estava com os olhos em mim, mas pouco conhecia de minhas atividades. Deixei a vida correr.

Na minha sala na FGV, certa vez, nessa mesma época, recebi um companheiro de outra organização vindo de uma ação urbana em Fortaleza; ele chegava  a caminho da embaixada do México, onde, ao contrário do exílio com que contava, se viu entregue a uma patrulha da polícia. Padeceria nas mãos do Exército e da tortura, mas esta é outra história que pede outra hora para ser contada.

Naquela altura eu era o que em nosso jargão se chamava de “submarino”, caminhando numa aflita corda-bamba para a qual fui conquistado pelo meu amigo Aytan Miranda Sipahi, velha amizade de meninos no curso primário do Ginásio Farias Brito, em Fortaleza. Na andança com Mário pelos endereços do Rio lembrei-me das reuniões com Apolônio de Carvalho. Desde que nosso “ponto” na Praça São Salvador fôra dado como inseguro, havíamos adotado o “método volante”: eu o apanhava na Praia de Botafogo e saíamos pela cidade no meu Gordini, invariavelmente às noites de quarta-feira, sem rumo preestabelecido, revendo e trocando documentos, discutindo linhas políticas, e eu sempre ouvindo relatórios que mantinham em alta meu ânimo. A direção desse carrinho intrépido me levou a muitas idas e vindas a São Paulo. Numa feita regressou comigo Aldo Arantes, já clandestino, sem que falássemos sobre nossas organizações distintas e rivais, mas amparados por uma confiança ditada por uma amizade que, nascida lá trás, se renova sempre que conversamos.

Volto ao rol de encontros do Mário. Feitos os contatos necessários, uns animadores, outros decepcionantes, dedicamos o resto do dia e a noite que começava para uma longa discussão, a melhor e mais instrutiva, a mais longa e também a derradeira – pois, sem que eu soubesse, estava vendo o meu amigo e dirigente admirado pela última vez.

A história, nada obstante suas advertências, não nos concedeu o tempo de que carecíamos para o rearranjo de meios e rotas. Não estava mais em nosso horizonte mirar o poder; o máximo de audácia então seria impor resistência à ditadura, mas o que nos restava era simplesmente tentar salvar a organização, e o grande empenho de Mário era reduzir ao mínimo as perdas, porque as perdas eram inevitáveis. Qualquer objetivo estava cada dia mais difícil, pois nossos avanços não eram significativos, enquanto a ditadura que pretendíamos enfrentar mostrava-se cada vez mais forte, e cada vez mais eficiente na repressão, que atingia requintes insuspeitados. Multiplicavam-se as baixas, rareavam as adesões. Perdíamos terreno na lógica da luta armada e não conquistáramos o apoio da opinião pública, separada de nós pelo muro de ferro representado pelo controle dos meios de comunicação. Era o nosso “beco sem saída”, o huis clos sartriano, a ausência de alternativa, mesmo desfavorável.

Mário podia admitir o império da realidade ingrata, mas dobrar-se estava fora de cogitação. Abandonar a luta seria renunciar às suas convicções mais arraigadas, seria abandonar no campo adversário os companheiros de luta. Sentia-se responsável pelo destino dos jovens que havia atraído, e não admitia outra alternativa senão continuar caminhando, lado a lado: “Não posso decepcioná-los”, repetia e repetia. Desapartado de aspirações pessoais, materialista e revolucionário de ideias e objetivos claros, carregava consigo um sentimento de missão por cumprir que transcendia o indivíduo, mais forte do que tudo, mais forte mesmo do que os riscos que não receava.

O líder caminhava para cumprir seu destino de herói.

Foi ainda com surpresa que vimos o chão abrir-se para nos devorar. A terrível lógica dos fatos. Nada sabíamos da prisão de Salatiel Teixeira Ribeiro, e muito menos desconfiávamos do conteúdo de sua delação. Os informes  foram chegando, assustando e dando sentido ao quebra-cabeças: um a um os “aparelhos” vinham caindo, um a um os quadros dirigentes eram presos e torturados. Muitos saíram com vida, todos conheceram processos, condenações e o presídio.

Neste janeiro de maus presságios registramos 55 anos da prisão, dores e assassinato de Mário Alves, baiano da geração de Gorender, Marighella e Giocondo Dias; revolucionário desde os 16 anos, um dos mais relevantes intelectuais do movimento comunista. Jornalista, editor, escritor, tradutor, deputado estadual, dirigente do PCBR, que fundara com Apolônio e Gorender, foi preso e trucidado por oficiais do Exército do Estado brasileiro no Rio de Janeiro, em 16 de janeiro de 1970. Levado para as masmorras do quartel da polícia do Exército, na Tijuca, foi espancado, submetido ao pau-de-arara, a choques elétricos e afogamentos, e, ao fim, empalado: foi-lhe introduzido pelo ânus até os intestinos um cassetete de madeira com estrias de aço.

O martírio de Mário Alves, este é o termo preciso, só seria conhecido muito tempo passado. Agonizante, foi jogado ao chão de uma cela, ao lado da qual, separado por um tabique, Raimundo Teixeira Mendes me contou haver assistido aos seus últimos momentos, capuz ligeiramente tombado, esvaindo-se em uma hemorragia e dores lancinantes, pedindo água.

Naquela data era presidente da República o general Emílio Garrastazu Médici; ministro da Guerra o general Orlando Geisel; chefe do Estado-Maior do Exército o general João Baptista Figueiredo; comandante do Primeiro-Exército, responsável pela jurisdição do Rio de Janeiro, o general Sílvio Frota; comandante do quartel da Polícia do Exército, palco desse e de centenas de outros crimes hediondos, o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira.

Antígona moderna, como Eunice, viúva de Rubens Paiva, como Zuzu Angel, mãe de Stuart, como centenas de outras mães, esposas e filhas e filhos assassinados pela ditadura militar, Dilma Vieira morreu em 2019, sem poder enterrar o cadáver de seu marido, Mário Alves de Souza Vieira.

***

O fascismo não inova – O que diz Donald J. Trump sobre o Canal do Panamá, a Groelândia e o Canadá, na verdade ameaçando o mundo, está muito próximo da “necessidade alemã” de conquistar o Leste europeu. Hitler falava em “espaço vital” (Lebensraum). O magnata, criminoso condenado por Tribunal de Nova York, fala em “interesses estratégicos”, o mesmo argumento falacioso que o sionismo vem usando para assaltar terras palestinas, dizimar Gaza, atacar a Cisjordânia, bombardear o Líbano e avançar sobre o espólio da Síria. As rodas da vida estão sempre a criar surpresas àqueles que supõem conhecer os limites da iniquidade. O fascismo não inova, muito menos na covardia. O que chamamos de civilização ocidental, esta trama judaico-cristã na qual nos encontramos sem dela nos podermos apartar, está a dizer que a miséria humana não tem limites.

O que o futuro reserva – Se Maílson da Nóbrega, o mago da hiperinflação (quando deixou o Ministério da Fazenda, em 15 de março de 1990, a inflação anual marcava 4.853%, a maior de nossa história, segundo o IPEA, que então a apurava), é hoje consultor da grande imprensa econômica, e se Michel Temer, o perjuro pedante, segue como voz adulada pela crônica política, onde poderá estar o capitão da reserva remunerada Jair M. Bolsonaro daqui a uns poucos anos, passados seus dissabores com os sistemas Judiciário e penitenciário?

E a política ativa e altiva? – As declarações recentes dos representantes do governo brasileiro em resposta às acicatadas de Trump, o criminoso que retorna à Casa Branca, contrastam, lamentavelmente, com qualquer propósito de uma política externa “ativa e altiva”, e beiram a sabujice. Cabe lembrar que as relações entre países são sempre bilaterais, de mão dupla, e que o Brasil, malgrado as elites que tem, não é nem precisa ser caudatário de nenhuma nação estrangeira, seja esta uma economia em ascensão ou um império em declínio.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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