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Frequentemente questionado pelas dinâmicas fiscais da terceira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), valeu-se de uma estratégia pouco ortodoxa para sustentar que o cenário das contas públicas está sob controle. O ministro destacou números positivos da economia, mas que não necessariamente refletem o risco e a iminência de uma crise fiscal — alerta que vem sendo feito por especialistas de diferentes vertentes, inclusive por economistas que já atuaram em gestões petistas.

No início de novembro, Haddad afirmou que o governo entregará “o melhor resultado fiscal do país em quatro anos, mesmo pagando tudo o que não se pagou de calote do governo anterior”. Segundo ele, diante das análises econômicas, há uma “impressão” de que o país enfrenta uma crise fiscal. “Isso é um delírio que eu preciso entender do ponto de vista psicológico, porque, do ponto de vista econômico, eu não consigo entender”, comentou.

O ministro citou a baixa taxa de desemprego, a menor inflação acumulada em uma gestão e o que classificou de maior crescimento econômico e melhor resultado fiscal em um único mandato. No entanto, deixou de mencionar as mudanças na meta feitas para aliviar a situação do governo, os gastos mantidos fora do arcabouço fiscal e o avanço da dívida pública, um dos fatores mais graves dessa equação.

É como uma família altamente endividada, que faz manobras entre novos empréstimos e cartões de crédito para se manter, mas se gaba de um carro de luxo recém-adquirido para afirmar que está tudo bem. E, na visão de especialistas, não está, pois o risco de crise fiscal é real.

Na semana passada, o economista Marcos Lisboa, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro governo de Lula, afirmou que o projeto econômico da terceira gestão lulista já nasceu fadado ao fracasso. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, disse que o governo gasta mais porque “escolhe gastar”, o que pode ser uma fórmula amarga no longo prazo, já que depende do aumento da arrecadação de tributos para sustentar a gastança.

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Para 2026, entre acelerar os gastos ou apostar na austeridade para melhorar as contas públicas e evitar uma crise fiscal, a resposta do governo parece óbvia — basta observar o discurso de Haddad, que insiste não haver motivos para preocupação.

Assim como Lisboa, Rafael Bastos, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), alerta que há sinais claros de risco fiscal, dada a trajetória crescente da dívida pública. O economista observa que a dívida “não para de crescer”, o que é motivo de preocupação.

Governo afrouxou meta fiscal pouco depois de aprovado o arcabouço

Haddad também disse que, desde 2023, se comenta que ele mudaria a meta de superávit primário, mas que não houve alterações e que seus objetivos foram mantidos. No entanto, em abril de 2024 — apenas sete meses após a aprovação do arcabouço fiscal —, a equipe econômica do governo reduziu a meta de 2025 para déficit zero. A regra original previa superávit de 0,5% do PIB.

Neste ano, o Tribunal de Contas da União questionou a Fazenda, afirmando que a pasta mirava o limite inferior da meta, que permite déficit de até 0,25% do PIB, quando deveria mirar o centro, ou seja, 0%, sem déficit nem superávit. Após embate público, porém, o TCU voltou atrás e suspendeu a orientação.

Segundo relatório de outubro da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado Federal, para garantir o limite inferior da meta e encerrar o ano com déficit de R$ 31 bilhões (dentro do limite de 0,25% do PIB), o governo ainda precisa cortar ou arrecadar R$ 27 bilhões.

Em 2023, o déficit chegou a R$ 264,5 bilhões — resultado que, segundo a gestão Lula, decorre de compromissos não cumpridos pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Em 2024, as despesas voltaram a superar as receitas, com déficit de R$ 11 bilhões.

Nesta semana, Haddad voltou a discordar do TCU e afirmou que o governo cumprirá o centro da meta graças ao empoçamento — recursos liberados mas não utilizados pelos ministérios.

O presidente da Corte, Vital do Rêgo, reconheceu que o empoçamento é uma realidade, mas que o valor não é fixo, o que impede uma previsão exata. “Então, o TCU não pode trabalhar em cima de uma variável”, disse, acrescentando que o órgão irá avaliar o montante visando ao centro da meta.

Excluir gastos da meta é estratégia para fechar as contas e mascarar indícios de crise fiscal

Além do afrouxamento da meta, outra estratégia da Fazenda é excluir diversos gastos do cálculo fiscal. Conforme apuração da Gazeta do Povo, desde o início do terceiro mandato as despesas da gestão petista fora do limite oficial somam R$ 337 bilhões — e a projeção é que alcancem R$ 400 bilhões até 2026.

Segundo Marcos Lisboa, essa forma de “fechar a conta” faz o governo retornar à contabilidade criativa — a mesma que marcou o impeachment de Dilma Rousseff (PT) — e retirar algumas despesas do limite de gastos, mascarando o tamanho do problema.

O economista afirma que o déficit primário — diferença entre despesas e receitas, excluídos os juros da dívida — divulgado pelo governo está distante do déficit real e destaca que as contas do Tesouro já não coincidem com as do Banco Central. “Você está usando truques para dizer que está com o arcabouço, quando, na verdade, está muito distante. Agora o arcabouço já nasceu morto”, disse.

Embora não sejam considerados para o cumprimento da meta, esses gastos entram na conta da dívida pública. Em outubro de 2020, durante a gestão Bolsonaro, a dívida atingiu o ápice de 87,7% do PIB devido aos gastos com a pandemia de Covid-19, mas recuou nos dois anos seguintes, fechando 2021 em 77,3% e 2022 em 71,7%.

Desde o início do terceiro governo Lula, contudo, a relação entre dívida e PIB voltou a crescer. Em setembro deste ano, o índice chegou a 78,1%, segundo o Banco Central. Para o Fundo Monetário Internacional, que adota metodologia diferente, a razão dívida/PIB do Brasil está em 90,5% — percentual superior ao de países da América Latina e de outras nações em desenvolvimento.

Crescimento da dívida pública traz impactos para inflação e juros

Além de impulsionar a dívida, os gastos crescentes e os déficits consecutivos do governo geram outros efeitos, como a pressão sobre a inflação e os juros. Rafael Bastos, do FGV Ibre, explica que, ao elevar as despesas, o governo injeta dinheiro na economia e, com isso, estimula a inflação.

Cabe ao Banco Central conter a alta dos preços, e para isso o BC utiliza a taxa de juros. Quando a inflação é baixa, os juros caem e vice-versa. Atualmente em 4,68% no acumulado de 12 meses, a inflação ainda está distante da meta de 3% ao ano. Assim, o BC se vê obrigado a manter os juros em patamar elevado.

“O gasto excessivo do governo faz com que a inflação suba, e essa inflação alta provoca o aumento da taxa de juros, que, em consequência, também eleva o custo da dívida”, comentou Bastos. Um ciclo vicioso.

Credibilidade de ajuste e regra fiscal é fundamental para baixar os juros

A dívida pública também pressiona os juros de outra forma. Bastos explica que, ao definir a taxa Selic, o Banco Central determina as condições de financiamento dos títulos públicos. “Se ninguém quer comprar esses títulos, o Banco Central precisa aumentar a taxa de juros para torná-los atrativos”, disse.

Quando há excesso de gastos e a regra fiscal não é confiável, como ocorre com o arcabouço, os agentes econômicos simplesmente cobram um prêmio mais alto para financiar o governo. Consequentemente, a taxa de juros tende a subir. 

“Então, na verdade, não é que a taxa de juros seja culpada pelo crescimento excessivo da dívida, é o contrário”, afirmou. Por essa razão, uma das formas de o governo contribuir para a queda dos juros é realizar um ajuste fiscal com credibilidade, que gere confiança e permita reduzir o custo do financiamento público.

Banco Central não tem data para reduzir taxa de juros

Diante da inflação alta e da falta de credibilidade fiscal, o Banco Central opta por manter elevada a taxa de juros. Na última quarta-feira (12), o presidente da autoridade monetária, Gabriel Galípolo, afirmou que o órgão tem um objetivo claro: alcançar a inflação de 3% definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

“Todo mundo pode brigar com o Banco Central. O Banco Central é que não pode brigar com os dados”, disse Galípolo. Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária (Copom) manteve a taxa Selic em 15% ao ano e sinalizou que deve preservá-la neste patamar por um período prolongado.

Na semana passada, Haddad defendeu que os juros deveriam cair. “Não tem como sustentar 10% de juros reais com inflação de 4,5%”, afirmou. Para ele, é possível reduzir a dívida reduzindo também a taxa de juros. “Nós podemos controlar a dívida pagando menos juros. Não precisa pagar esse juro todo. Esse juro todo tem impacto, inclusive sobre a inflação”, disse.

Aumento das despesas e crise fiscal é consequência do arcabouço

Mais do que um fenômeno pontual, o aumento sucessivo dos gastos do governo resulta da própria regra criada pela gestão petista: o arcabouço fiscal. Marcos Lisboa observa que, ao aprovar a regra no Congresso, o governo vinculou várias despesas à arrecadação — ou seja, sempre que a receita aumenta, a despesa também cresce.

Para ele, a regra já nasceu falha, mas a proposta original não trazia os cálculos que deixavam esse problema evidente. “Você pode aumentar as receitas o quanto quiser, [isso] não vai comprimir as [despesas] discricionárias”, afirmou.

Lisboa acrescenta que a agenda do governo é, na prática, de expansão de gastos e aumento de receitas de forma desorganizada, sem uma estratégia tributária clara — o que acaba gerando distorções na economia. Segundo ele, o governo alega estar cumprindo suas obrigações de curto prazo, mas apenas cria novas distorções de longo prazo.

A Proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2026 já aponta fragilidades no equilíbrio do arcabouço. De acordo com o texto, em 2027 o governo não teria recursos suficientes para cobrir os gastos.

Arranjos como a Emenda Constitucional 136, que retirou o pagamento dos precatórios da meta fiscal e do resultado primário, resolvem, por ora, a situação. Mas, ao que tudo indica, será inevitável repactuar a regra fiscal.

“Anos eleitorais têm essa característica de não só permitir a mudança ou a manutenção do governante, mas também de repactuar alguns temas. E não duvido que, no ano que vem ou em 2027, independentemente de quem vencer, essa questão fiscal terá de ser renegociada, porque o arcabouço, da forma como está, não é sustentável nem crível”, afirmou Rafael Bastos.

A expectativa, segundo o economista, é que se crie uma regra fiscal com credibilidade, capaz de estabilizar a trajetória da dívida e, assim, permitir a redução da taxa de juros, evitando uma crise fiscal mais acentuada.

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