Homens de bens – CartaCapital

Uma das principais apostas do presidente Lula, o projeto de isenção de Imposto de Renda para os contribuintes que ganham até 5 mil reais mensais e o aumento, como compensação, da taxação para quem recebe mais de 50 mil reais caminha para virar um problema para o Palácio do Planalto. A contradição entre uma Câmara de Deputados com patrimônio médio dezenas de vezes superior ao dos eleitores, apontada em estudo do INCT/ReDem (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Representação e Legitimidade Democrática), reforçou o alerta para uma possível nova derrota legislativa do Executivo. A hipótese de aprovar a isenção sem elevar os tributos do topo da pirâmide animou as recentes conversas da oposição. Se a isenção for aprovada sem uma contrapartida, Lula não terá recursos para sustentar a bandeira da “justiça tributária”.

Os números da desigualdade entre representantes e representados assustam. Cada deputado declarou, ao se candidatar, patrimônio médio de 3 milhões de ­reais, 62 vezes mais do que os 47,7 mil reais detidos pelos brasileiros em média, segundo a FGV Social, com base em informações da Receita Federal. Apenas 5,1% dos 513 parlamentares acumulam mais de metade do valor dos bens declarados. São 26 deputados, cada um com mais de 10 milhões ou, somados, 829,7 milhões. Se a amostra for a 10% dos eleitos, meros 50 integrantes, o bolo vai a 1 bilhão de ­reais, 64,55% do total de 1,56 bilhão. A concentração da riqueza na Câmara supera a marca do Brasil. No País, os 10% mais ricos acumulam uma proporção menor do total dos ativos: 58,6%.

“Para além da derrota no aumento da IOF, há indicativos de que os deputados não deverão colaborar com o governo nos próximos meses”, avisou o cientista político Fábio Vasconcellos, do ­INCT/­ReDem, em texto na internet. “Dados da última pesquisa Quaest mostram que 46% dos parlamentares são contra o aumento da taxação para os super-ricos, enquanto 44% são favoráveis. Em outra questão, 53% afirmaram ser contra o PL que limita os supersalários. A proposta do fim da escala 6×1, que conta com a simpatia do Executivo, é rejeitada por 70% dos deputados.”

O patrimônio médio dos parlamentares é 62 vezes maior do que dos eleitores em geral

A advertência resume parte das dificuldades que o governo Lula tem enfrentado no Legislativo. Sobretudo na Câmara, onde os partidos governistas encaram a obstinada campanha da extrema-direita por anistia para o ex-presidente Jair Bolsonaro, que levou à ocupação da Mesa Diretora e paralisou o trabalho parlamentar. Os partidos do governo também toureiam o Centrão que, insatisfeito com a lenta liberação de recursos destinados às emendas parlamentares, ameaça juntar-se aos extremistas na ideia de aprovar a isenção para os pobres sem subir a taxação dos mais ricos. Se bem-sucedida, a manobra implodirá o Orçamento.

A distância entre os perfis socioeconômicos da Câmara e do Brasil real (a base de dados considera a composição da Casa no início da legislatura) alertou ­Vasconcellos para a possibilidade de sucesso da investida oposicionista. O acadêmico compilou dados do Tribunal Superior Eleitoral, cruzou-os com informações da FGV Social e analisou tudo com métodos estatísticos e teorias da representação política. Concluiu que a diferença de posses entre representantes e representados pode prejudicar o avanço na Câmara de propostas que beneficiem os pobres em detrimento dos ricos. É o caso do projeto de isenção do IR para as rendas baixas, 10 milhões de brasileiros, com taxação dos abastados, 140 mil.

“Em um modelo perfeito, a média da população estaria representada na média do Parlamento ou muito próximo”, afirmou, para explicar a diferença tão acentuada de perfis socioeconômicos entre os deputados e os eleitores. “Mas aí entram diversas outras variáveis que afetam esse modelo idealizado: o dinheiro, as campanhas, o interesse por política, as regras institucionais.”

Uma das ferramentas usadas por ­Vasconcellos para analisar a riqueza acumulada pelos deputados foi a mediana, em reais, dos bens de cada parlamentar. Trata-se de um recurso estatístico, um número que divide em dois grupos de tamanho igual uma série de valores organizados de forma crescente. Se essa medida for mais alta, metade dos números acima dela estará concentrada em níveis mais elevados. Quando aplicada aos dados colhidos no TSE e cruzada com preferências ideológicas, essa régua mostra que os direitistas têm o dobro de bens dos esquerdistas na Câmara. Para a direita, a medida foi de 1,245 milhão de reais, enquanto para a esquerda ficou em 634 mil. A proporção aproximada foi confirmada na comparação dos 25% mais ricos de cada lado (respectivamente, 2,568 milhões para direitistas e 1,394 milhão para esquerdistas) e dos 25% mais pobres dos dois campos (446 mil a 237 mil).

Já as medianas do centro-direita (1,5 milhão de reais) e centro-esquerda (1,1 milhão) são próximas. Isso indica valores quase equivalentes entre os deputados próximos ao centro.

Os dados trazem outras pistas relevantes sobre a desigualdade na Casa e no Brasil. Quinze dos 26 parlamentares mais ricos, 2,98% dos 513, são do Norte e Nordeste, as regiões mais pobres e desiguais do País. Eles somam patrimônios de 504,3 milhões de reais, quase 61% do total acumulado pelos 26 mais ricos e 32,15% dos bens de todos os integrantes. Se for considerado apenas o 1% mais rico (cinco ­deputados), o bolo, 430,6 milhões, será equivalente a 27,42% do total. “Vai ter um problema que eles não discutem muito, a compensação”, insiste Vasconcellos.

Detentor do maior patrimônio na Casa, 158,1 milhões de reais, o deputado Eunício Oliveira (MDB–CE), por nota, afirmou não ter informações sobre a tendência da maioria da Casa e se disse favorável à isenção dos rendimentos de até 5 mil mensais. Não esclareceu, porém, como votará no caso da taxação dos mais ricos. •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Homens de bens’



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