A última semana teve início promissor no domingo 21, pois se ouviu, a lembrar outros eventos, a voz do povo: livre, espontânea, alegre, mas trazendo para as ruas um grito reprimido de inconformismo, um rotundo não! à atonia política que parecia dominar o País, receoso de fazer frente à maré montante da extrema-direita, apresentada como história já acontecida, cantada nas ruas, recitada na imprensa, nos púlpitos, nas portas dos quartéis. As ruas e as praças, o espaço onde o povo atua e faz história, seriam agora o território privilegiado do reacionarismo.
A história parava aí.
Mas o povo, mobilizado, disse não, e com seu gesto pôs de manifesto o torpor de nossas lideranças, políticas e governantes, a anomia dos partidos, o conhecido recesso do movimento sindical.
Fracassada a intentona de janeiro de 2023, julgados e condenados os principais mandantes, articulava-se à luz do dia, no Congresso e fora dele, uma vez mais — e certamente não ainda pela última (a persistirem os vícios letais da conciliação e da impunidade) — a desmontagem do pacto político democrático conquistado com a constitucionalização em 1988, fruto dos 21 anos de resistência à ditadura instalada em 1º de abril de 1964, sustentada enquanto possível pela aliança dos militares golpistas com o grande capital e o apoio político, financeiro e estratégico dos EUA, este mesmo que hoje azucrina o governo Lula.
Na sequência da desmontagem do que ainda tínhamos de Estado social (ofício em que se esmera desde o impeachment de Dilma Rousseff), após o golpe branco continuado contra o presidencialismo, açambarcando competências do Poder Executivo, a direita articulava o golpe no golpe, cujo ponto de partida sem retorno residia na virtual decretação da falência do Poder Judiciário, mediante a anulação de suas decisões e a ameaça de impeachment pairando como espada de Dâmocles sobre as cabeças de seus ministros.
A senha, na sequência da tomada de assalto da Mesa da Câmara dos Deputados por parlamentares celerados, era o encontro da PEC da Bandidagem com o PL da Anistia, reunindo, nas graças da impunidade, criminosos comuns e criminosos políticos, passados, presentes e presuntivos, os parlamentares de hoje e de amanhã, e os golpistas fardados e os golpistas paisanos que atentam contra a ordem democrática desde a proclamação da República.
A população entendeu que se davam as mãos as iniciativas da direita nativa com as ações agressivas e reiteradas dos EUA contra nossa economia e nossa soberania, e as unificou como uma única ameaça. Contra elas se levantou, tecendo como uma só luta o combate à impunidade e o fim da conciliação política mediante a defesa da democracia e da soberania nacional. Foi o enlace que mobilizou a consciência política e levou o povo a ocupar as ruas, afirmando sua vontade.
Que seu grito não fique parado no ar.
O saldo histórico mais relevante deste 21 de setembro terá sido, para além do veto à impunidade parlamentar (já consagrado no Senado) e à anistia aos golpistas (ainda tramitando na Câmara dos Deputados), haver o povo se assumido como o fiador da democracia. Esta é a bandeira que as forças de esquerda e progressistas, de um modo geral, deverão sustentar.
As manifestações do domingo têm, do ponto de vista político, um significado exemplar que as aproxima das memoráveis mobilizações que, fechando a campanha das Diretas Já, desaguaram em abril de 1984 nos comícios do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os idos de abril anunciavam o fim da ditadura, que, velha e exaurida, sairia de cena no ano seguinte. O melhor retrato desse fim sem honra nos foi ensejado pelo último ditador, o general João Baptista Figueiredo, ao abandonar o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos, no dia 15 de março de 1985.
A festa de 21 de setembro deste ano deve encerrar o ciclo das dúvidas táticas da esquerda no enfrentamento dos desafios e anunciar uma nova fase da ação política.
Desta feita, as mobilizações, convocadas por intelectuais e artistas identificados com sua gente, sem a presença ostensiva das organizações partidárias e sindicais (mas com a necessária participação delas), sem apoio da grande imprensa, sem transporte facilitado, percorreram todas as capitais e muitas cidades do interior do País, reunindo multidões em número ainda não contabilizado.
No Rio e em São Paulo, estados e capitais governados pela direita, os militantes da democracia foram calculados em algo superior a 90 mil. E a Avenida Paulista, como respondendo ao desafio posto pelo fascismo, se esmerou ao estender a imensa bandeira do País, fixando a imagem icônica da opção nacional, contrastando com a vassalagem oferecida pela direita ao carregar como sua a bandeira do imperialismo, quando os EUA mais atacavam nossa economia, nossa dignidade, nossa independência, nossa soberania.
Assim, a direita e a esquerda, no Brasil, passaram a ter seus símbolos, e o nosso é aquela imagem da Avenida Paulista no dia 21, fundindo ideia, sentimento e ação.
O que virá, a seguir, serão suas consequências, ainda mais significativas na medida em que as ruas não forem novamente abandonadas, e as lideranças políticas de nosso campo tiverem, enfim, compreendido que a única luta que se perde é aquela que se abandona, ou não se trava. E que o povo não se omite, quando corretamente sensibilizado.
Essa história em processo, e este renascido projeto de um país que luta por preservar sua independência e sua soberania — independência e soberania que precisam ser defendidas com ações afirmativas todo dia (diz a história dos povos) — constituiu a coluna dorsal do discurso do presidente Lula, ao abrir a 80ª Assembleia Geral da ONU, no último dia 23.
O presidente pôs de pé o país, com firmeza e sem recorrer a bravatas; respondeu a todas as agressões e ameaças com dignidade e coragem e, ao fim e ao cabo, traçou as linhas mestras de uma política externa que já foi identificada como “ativa e altiva”.
É documento para ser distribuído, ouvido e lido em todo o país, nas escolas e na caserna, massificado, discutido e, afinal, adotado como seu pela Nação, que, consciente de seu significado, saberá cobrar a fidelidade do Estado, do atual governante e de seus sucessores.
Nada de novo no front
As comemorações são justas, ademais de necessárias, mas todo cuidado é pouco para não confundirmos ponto de partida com ponto de chegada. É recomendável considerar, sempre, o poder do grande capital e da gendarmeria do imperialismo, tanto mais agressivo quanto mais se revela sua crise.
Há que ter presente as resistências de uma economia dependente da exportação de commodities, matérias-primas e minério in natura, como é a nossa, incrustada na periferia do capitalismo.
E é preciso considerar as limitações objetivas do governo de centro-esquerda, minoritário em Congresso controlado pela extrema-direita, e à mercê de uma classe dominante cuja visão de mundo é condicionada por um enraizado sentimento de inferioridade em face do mundo dito desenvolvido (este que está destruindo o planeta), seus valores e seus interesses, os quais, sem qualquer crítica, ela procura reproduzir como se fossem seus.
Por esta ótica de vira-lata é que o mainstream da imprensa nacional se vê, nos vê e enxerga o mundo. Por isso pouco viu e ouviu Lula e seu discurso. A FSP e O Globo na quarta-feira 24 trouxeram para a primeira página o improviso de Donald Trump, acusando a descoberta de uma certa “química” com o nosso presidente (que a confirmaria mais tarde, acrescentando reciprocidade), captada em 39 segundos de um encontro casual nos corredores da ONU. O longo discurso de Lula, em contraste, seria matéria para as páginas internas.
Nesse encontro, que certamente entrará para os anais da política internacional, de tão relevante que pareceu aos grandes jornais, Trump teria convocado nosso presidente para um tête-à-tête, e logo vêm, deles, as recomendações para Lula não postergar o encontro. E chovem conselhos sobre as concessões que teríamos de fazer ao império.
Concessões que devem ser anunciadas antes das negociações, e assim caberá ao Brasil entregar a cereja de seu bolo: para o oligopólio da comunicação, o que haveria por barganhar deve ser ofertado de graça, como quem renuncia aos ases no jogo de cartas.
Nem um pio sobre nosso direito a reclamar explicações sobre as agressões sofridas pelo nosso País, repetidas e acentuadas por Trump em seu discurso autorreferente e racista, proferido na sequência do pronunciamento de Lula.
Nenhum dos jornalões registrou que o magnata, numa afronta ao nosso País, disse que o Brasil vai mal (sob que aspecto? Os dados sobre queda do desemprego e aumento da renda, por exemplo, são conhecidos), e que só irá bem se estiver com os EUA. Justiça seja feita à síntese do Correio Braziliense: “A mensagem central do discurso de Trump na ONU: ou é do meu jeito, ou nada feito”.
O Estadão de nada gostou e reduz o discurso de Lula a um “show ideológico”. Para o jornal dos Mesquita, nosso presidente foi “um papagaio a repetir chavões esquerdistas contra o imperialismo ocidental”. Mais realista do que o rei, cobra de Lula críticas à Rússia pela invasão da Ucrânia (coisa que o presidente já fez noutras oportunidades), enquanto Volodymyr Zelensky agradece publicamente a Lula por haver apelado por um cessar-fogo em seu discurso, e pelos esforços do Brasil pela paz na região.
A classe dominante diz que o fundamental é negociar “tecnicamente” (como se esta e qualquer negociação entre Estados pudesse não ser política…), aproveitando a brecha “inesperadamente” aberta por Trump. O Valor, dos Marinho, dita a etiqueta: “É mais a hora de demonstrar competência diplomática que protestos políticos” (25/09).
Governo e setor privado, diz O Globo (25/09/25), estariam trabalhando um “cardápio de itens”, e já seriam conhecidas propostas de concessões em áreas estratégicas, como minerais sensíveis (terras-raras e outros), energia, data centers e inteligência artificial.
Como se vê, se temos todas as razões para comemorar os atos de 21 de setembro e apostar em seus frutos, a experiência recomenda muita cautela e muita vigilância na proteção de nossos interesses, que depende de permanente mobilização política.
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O mundo desperta I — Para além do aplaudidíssimo discurso de Lula, e do embaraçoso pronunciamento do líder dos EUA (“memorável e esquisito”, nas palavras de um colunista do Financial Times; “violento e confuso”, segundo o Libération), a 80ª UNGA contou com uma gama de declarações impactantes concernentes ao tema incontornável de nossa época: o genocídio palestino. Se Lula sentenciou, com acerto, que “o mito da superioridade ética ocidental está sepultado sob os escombros de Gaza”, os líderes de Irã e Turquia foram veementes na denúncia dos crimes de Israel, e a primeira-ministra da Eslovênia afirmou que o criminoso será preso se pisar em seu país. Num belíssimo pronunciamento, o colombiano Gustavo Petro conclamou o mundo a fornecer aos palestinos aquilo de que eles mais precisam, hoje, para não serem varridos do mapa: ajuda militar. Como se houvessem ouvido seu apelo, Itália, Espanha e Grécia enviaram navios de guerra para escoltar a Flotilha da Liberdade, que leva solidariedade, alimentos e medicamentos à população violentada de Gaza — algo que Israel considera inadmissível.
O mundo desperta II — Superando a fase das denúncias — necessárias, mas claramente insuficientes —, o Brasil age e suspende a remessa de petróleo para o enclave sionista. Mas mantém, ainda, o fornecimento de aço, fundamental para o funcionamento da indústria assassina. Os atos precisam seguir acompanhando a excelência das palavras.
O assassino voa — Com mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional, pelos notórios crimes de guerra que tem praticado, Benjamin Netanyahu discursou nesta sexta-feira 26 no púlpito da ONU — o que, em si, é uma afronta à razão de ser da Organização. Repetindo o gesto que já se dera no ano passado, dezenas de delegações se retiraram do plenário no momento da infâmia. Registre-se que a delegação brasileira, coerente com os princípios inscritos na nossa Constituição (inclusive aqueles que regem as relações internacionais do País), foi uma das que deram as costas para o genocida.
(Com a colaboração de Pedro Amaral)
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