PEDRO S. TEIXEIRA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Empresa de criptomoeda com a maior receita declarada no mundo, a Tether anunciou no início deste mês que irá minerar bitcoins no Brasil usando energia de usinas termelétricas de biogás subsidiadas por Mato Grosso do Sul.
Trata-se de uma operação intensiva em eletricidade para realizar as operações matemáticas necessárias na validação de transferências de bitcoins –quem decifra o código primeiro recebe uma criptomoeda como recompensa. Neste caso, a Tether planeja construir complexos de processamento de dados dedicados à atividade.
Sediada em El Salvador, um paraíso fiscal das criptomoedas, a Tether é dona desde abril da Adecoagro, uma companhia agrícola argentina, com operações em MS e Minas Gerais. A empresa de tecnologia é mais conhecida por emitir um criptoativo de valor pareado ao dólar, o USDT.
A companhia salvadorenha comprou a Adecoagro com uma oferta não solicitada apresentada em 19 de fevereiro, na qual ofereceu US$ 12,41 por ação. Ao fim do negócio, concluído em 29 de abril, a Tether acabou com 70% das ações preferenciais da empresa argentina.
Um dos objetivos do gigante das criptos é se tornar o maior minerador de bitcoins do mundo, segundo declaração de seu CEO Paolo Ardoino.
Engenheiros e advogados ouvidos pela Folha alertam que as criptomoedas recém-mineradas são um ativo financeiro sem origem e, por isso, podem ser usadas para lavagem de dinheiro.
Procuradas, a Tether e a Adecoagro disseram que não iriam comentar. O anúncio informa que detalhes da operação serão divulgados no futuro. Mato Grosso do Sul e os municípios de Ivinhema e Angélica, onde a Adecoagro tem usinas, tampouco responderam aos pedidos de informação sobre o licenciamento dos data centers que serão destinados à mineração de criptomoedas.
Em seu site, a Tether anuncia que a atividade mineradora com energia renovável tem o intuito de reduzir o impacto ambiental da cadeia de suprimentos da economia digital, além de torná-la mais resiliente e descentralizada ao manter pontos de mineração em diferentes partes do mundo.
COMO FUNCIONARÁ MINERAÇÃO
O processo é chamado de mineração por causa das semelhanças com a mineração do ouro, diz Marcelo de Castro Cunha Filho, sócio do escritório de advocacia Machado Meyer. “O bitcoin não sai de nenhuma empresa ou de uma pessoa para o recebedor. Ele é gerado mesmo, literalmente, no protocolo [o código da blockchain], e não dá para dizer que é emitido, porque não existe a figura de um emissor identificado”, explica.
De acordo com o ex-minerador de criptomoedas Alex Telles, a mineração é uma atividade imprevisível, porque depende do desempenho da concorrência, e de rentabilidade instável, devido às oscilações do bitcoin. “A margem de lucro do negócio é muito apertada, é preciso ganhar no volume e ter equipamento de ponta para competir”, diz. Ele acrescenta que “é um negócio para peixe grande”.
Mesmo se tratando da Tether, ele avalia que a margem de lucro da mineração de bitcoins usando eletricidade gerada com resíduos de cana-de-açúcar deve ficar apertada, considerando que é uma fonte de energia cara.
Entre as fontes renováveis, o biogás tem os piores preços, mostra estudo da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) do ano passado.
Segundo Telles, hoje as principais operações de criptomoedas ficam na Rússia e no Cazaquistão, que têm gás natural barato. A China era outro polo importante, mas expulsou as mineradoras de lá por causa do alto consumo de eletricidade para o baixo retorno em empregos, além da falta de controle do Estado sobre os criptoativos.
A mineração da Tether terá subsídio indireto do programa de fomento de Mato Grosso do Sul, definido por decreto do governador Eduardo Riedel (PSDB-MS). A política, que beneficia a Adecoagro, reduz a base de cálculo do ICMS para a geração do biogás usado nas termelétricas, baixando a carga tributária estadual de 17% para 12%. Ainda há concessão de crédito presumido de 85% do imposto pago para venda do biogás dentro do estado –na prática, a carga tributária fica em 1,8%.
Além disso, o estado oferece impostos para equipamentos essenciais para a geração de energia com biometano, como aparelhos para coleta e drenagem de gás, subestações de energia elétrica, grupos motogeradores, transformadores, entre outros.
A companhia agrícola argentina tem usinas nos municípios de Angélica e Ivinhema, com capacidades de geração, respectivamente, de 96 megawatts (MW) e 120 MW, de acordo com dados da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Segundo o anúncio da Tether, o potencial das mineradoras será de 230 MW, indicando uma expansão na geração.
BRASIL NÃO TEM LEIS PARA MINERAÇÃO DE BITCOIN
Como não há legislação específica para a mineração de bitcoin, a atividade, hoje, é faturada como prestação de serviço de processamento de dados, como se fosse um data center comum.
Segundo Cunha Filho, a lei 14.478 de 2022, que regulou a prestação de serviços com ativos virtuais, como o bitcoin, não trata de mineração. Originalmente o texto tinha um dispositivo para incentivar a mineração de criptomoedas com energia limpa, mas esse trecho ficou fora da versão final.
No Brasil, de acordo com Drey Dias, técnico da empresa de rastreio de criptomoedas Chainalysis, o rendimento decorrente de mineração deve ser declarado à Receita com o valor de mercado no momento da aquisição, com custo zero. Assim, as autoridades podem tributar eventuais ganhos financeiros com a valorização da criptomoeda.
Ainda segundo Dias, uma vez que o bitcoin minerado é jogado na rede, é difícil acompanhar sua circulação. “A moeda poderá ser enviada a qualquer carteira pelo dono”, diz.
Os bitcoins minerados ainda sem movimentação, por causa da difícil rastreabilidade, são vendidos com ágio na dark web (uma camada sem fiscalização da internet), afirma o professor de engenharia da computação da Escola Politécnica Marcos Simplício.
“O mais razoável, se a empresa quiser ser transparente, é se identificar com uma carteira pública, para indicar a origem do dinheiro”, diz Simplício. Ainda segundo ele, existem cooperativas de mineração que permitem transparência ao mesmo tempo que diminuem a exposição dos mineradores.
Técnicos da Receita ouvidos pela reportagem afirmam que é um desafio técnico confirmar os valores obtidos na mineração. Por isso, a declaração depende da cooperação dos mineradores.
EMPRESA INVESTE EM MINERAÇÃO COM ENERGIA RENOVÁVEL EM OUTROS PAÍSES
Hoje, a Tether já minera bitcoins em países menores como El Salvador e Uruguai.
Em território uruguaio, onde a empresa começou a operar em 2024, o gigante dos criptoativos ligou suas bases aos campos de geração de energia eólica de Pintado B e de Colonia Sanchez, ambos na província de Florida. São 45 MW de capacidade instalada, um quinto do que se pretende instalar no Brasil.
A construção dos data centers custou US$ 20 milhões, com contratação de firmas locais. Segundo a empresa, houve geração de 60 postos de trabalho diretos, incluindo engenheiros, técnicos, seguranças, jardineiros, arquitetos, construtores, entre outros.
Cada um dos pontos de mineração tem capacidade instalada de 22,5 megawatts, e gasta “pouca água” devido a práticas de reúso dos líquidos empregados na refrigeração, informa o documento de licenciamento ambiental obtido pela intermediadora uruguaia Microfin.
De acordo com as projeções apresentadas no documento, que consideram o investimento inicial e todos os custos de operação –sendo o principal gasto a conta de energia–, as duas mineradoras no Uruguai devem destinar US$ 150 milhões à província de Florida em 20 anos.
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