entenda por que indígenas reivindicam uma nova Comissão da Verdade – CartaCapital

Quando a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou seu relatório final, em dezembro de 2014, a lista oficial de mortos e desaparecidos políticos incluía 434 pessoas. Nenhuma delas era indígena. Não porque a ditadura militar tenha poupado os povos originários – pelo contrário, a própria CNV estimou que alguns milhares foram mortos no período. E, sim, porque essa população não era o foco do colegiado, que abordou a temática de maneira secundária, só após pressão da sociedade civil.

Em seu caderno temático dedicado aos povos indígenas, a Comissão contabilizou ao menos 8.350 mortes por ação direta ou por inação de agentes do Estado, quase 20 vezes mais do que os considerados mortos e desaparecidos políticos. O número, reconheceu a CNV, está muito aquém da realidade, já que se baseou em investigações sobre apenas dez povos, dentre os mais de 300 que o Brasil tem mapeados atualmente.

Para colocar o tema no centro do debate, identificar e evitar a repetição dessas violações – acentuadas na ditadura, mas presentes desde a colonização, e mesmo após a redemocratização –, os indígenas querem a sua própria Comissão da Verdade.

Cena do filme Arara (1970) de Jesco von Puttkamer; Na formatura da primeira turma da Guarda Rural Indígena (Grin), ditadura simulou tortura “pau-de-arara” com membros da guarda. Créditos: Reprodução / Museu da Resistência SP

“Remoções forçadas, perseguição, intimidação, cárcere privado, contaminação por doenças como sarampo e varíola, proibição de falar a língua, tortura, assassinato, estupro e sequestro de crianças criadas pelos próprios invasores”. A enumeração feita por Paulino Montejo, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), representa apenas uma parcela das violências perpetradas pelos militares contra os povos indígenas, muitas delas ainda hoje ocultas.

Para o procurador da República Marlon Weichert, apesar das violações de direitos dos povos originários não terem começado na ditadura, “há padrões que se aceleraram ou ganharam intensidade no regime”. Foi nesse período que foram construídas grandes obras de infraestrutura e ‘integração’, como rodovias e usinas hidrelétricas, à revelia de qualquer direito indígena e ao custo de muitas vidas.

Sem que as violências do regime militar contra os indígenas tenham sido adequadamente apuradas, não faltam casos de povos que continuaram tendo seus direitos violados mesmo após o fim da ditadura. Os Yanomami, mortos às centenas durante a construção da rodovia Perimetral Norte, e novamente durante o governo Bolsonaro. Já os Arara foram afetados pela Transamazônica no regime militar, por Belo Monte e pelo descaso nas últimas décadas. E esses são apenas dois dos muitos exemplos.

“A ocultação da verdade e o esquecimento, são a mola propulsora da repetição e da recorrência”, afirma Weichert. “A sociedade brasileira naturaliza a violência contra os povos indígenas, naturaliza o esbulho das terras indígenas pelo agronegócio, pelo latifúndio. É uma prova viva de como a falta de conhecimento dessas violações facilita e contribui para a recorrência desses eventos”, diz o procurador.

Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça quer apresentar proposta de criação de Comissão Indígena da Verdade ainda esse ano. Créditos: Leobarck Rodrigues / Secom / MPF

Montejo e Weichert são duas das figuras por trás do Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça (Fórum JTPI), que reúne organizações indígenas e da sociedade civil que defendem a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). Além da Apib e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), o Fórum é encabeçado pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e pelo Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (Obind-UnB).

A reivindicação, já presente nas 13 recomendações que a CNV fez para o Estado brasileiro em relação aos povos indígenas, ganhou força nos últimos anos por dois motivos, segundo Weichert. O primeiro é um processo de compreensão paulatina do conceito de justiça de transição pelos indígenas nas últimas décadas, até que a ideia amadurecesse e fosse apropriada pelos povos originários. Nos últimos anos, a Apib tem promovido seminários sobre o tema em seus territórios de abrangência, em uma espécie de “ensaio” para a CNIV.

O segundo é a “urgência histórico-jurídica” desencadeada pelo avanço da tese do Marco Temporal, que está travando a principal pauta dos povos indígenas: a demarcação de terras. A tese que considera que só devem ser demarcadas as terras em que havia ocupação por indígenas na data de promulgação da Constituição de 1988, foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e em seguida tornada lei pelo Congresso. Desde então, está em processo de conciliação no Supremo.

“Contar a história da repressão dos povos indígenas durante a ditadura vai escancarar a artificialidade e o equívoco conceitual manifesto da tese do marco temporal. É a história de povos que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 porque tiveram seus direitos violados, foram forçados ao deslocamento, esbulhados, perseguidos, mortos, dizimados”, afirma Marlon Weichert.

A proposta oficial de criação da CNIV, formulada pelo Fórum JTPI, deve ser apresentada ao Estado brasileiro nos próximos meses. Ainda há alguns pontos em discussão, incluindo o seu escopo temporal – enquanto a CNV abarcou o período entre as promulgações da Constituição de 1946 e a de 1988, com ênfase no período militar, há discussões sobre a CNIV abranger um período maior, – mas é consenso que o protagonismo indígena precisa estar no centro.

“A gente quer reescrever a história dos povos indígenas no Brasil, porque tudo até agora foi ‘fake’ [falso], sem considerar, sem valorizar a participação dos povos indígenas na formação social brasileira. A não repetição [das violações da ditadura] tem que vir através de políticas de Estado estruturantes”, diz Paulino Montejo, da Apib.

Faixa contra o Marco Temporal em uma retomada Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul; povo foi um dos mais violentados pelo regime militar. Créditos: Gabriel Scholikmann / Agência Pública

O que se sabe sobre as violações contra os povos indígenas durante a ditadura militar

Recomendações da Comissão Nacional da Verdade

De acordo com a Comissão, entre as 8.350 vítimas indígenas da ditadura, foram mortos 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé. Em relação aos Guarani e Kaiowá, recorrentemente atacados no Mato Grosso do Sul e no Paraná, a CNV “não ousou apresentar estimativas”. Ao longo do documento de 60 páginas, são citados mais de 50 povos que sofreram algum tipo de violência durante as quatro décadas [1946 a 1988] analisadas, incluindo indígenas isolados.

Além de abordar uma parcela das violações sofridas pelos povos indígenas durante a ditadura, a CNV fez 13 recomendações ao Estado brasileiro.

No campo da responsabilização, recomendou que o Brasil fizesse um pedido público de desculpas pelas violações e pelo esbulho territorial e reconhecesse como crime de motivação política a perseguição aos povos indígenas no período investigado.

No campo da reparação, além da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, recomendou ampliação da anistia para contemplar reparação coletiva, criação de grupo de trabalho para instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas afetados, fortalecimento de políticas de atenção à saúde, recuperação ambiental das terras indígenas degradadas e, “como a mais fundamental forma de reparação coletiva”, a regularização e desintrusão das terras indígenas.

A CNV também fez recomendações no campo da memória e informação, sugerindo campanhas nacionais sobre respeito aos direitos dos povos indígenas, inclusão no currículo oficial da rede de ensino das violações sofridas por essa população, criação de fundos de fomento à pesquisa e difusão da temática e sistematização no Arquivo Nacional de toda a documentação relacionada a essas violações.

Em março de 2023, um relatório conduzido pelo Instituto Vladimir Herzog constatou que a maior parte das recomendações relacionadas aos povos indígenas havia tido retrocesso nos anos anteriores, durante o governo de Jair Bolsonaro. O Instituto monitora o cumprimento de todas as recomendações da CNV periodicamente e um novo relatório será publicado nos próximos meses.

Outras iniciativas sobre as violações contra indígenas

Uma das mais significativas é o Relatório Figueiredo, que revelou violências cometidas contra povos indígenas nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967, foi usado como justificativa para a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e para a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai, hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O relatório passou décadas tido como “eliminado”, até ser encontrado pelo ativista e pesquisador Marcelo Zelic, em 2013.

Zelic, falecido em maio de 2023, foi um dos responsáveis pela CNV ter se debruçado, ao menos parcialmente, sobre as violações contra povos indígenas. Um dos principais defensores da instalação de uma Comissão Nacional Indígena. Ele criou o Armazém Memória, que compila milhões de páginas de documentos sobre direitos humanos, a ditadura e povos indígenas.

Outra iniciativa é o livro “Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura”, escrito por Rubens Valente. Uma das histórias do livro é contada no segundo episódio do podcast Morte e Vida Javari, da Agência Pública.

Posição do governo Lula

Mesmo com a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a nomeação da primeira pessoa indígena para comandar a Funai e de uma mudança de postura generalizada frente aos povos indígenas em comparação com o governo Bolsonaro, a posição do governo Lula em relação ao estabelecimento da CNIV é dúbia.

A ministra Sonia Guajajara, do MPI, já se manifestou favoravelmente à iniciativa, assim como a presidente da Funai, Joenia Wapichana. Mas, em uma audiência promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o tema, o representante do governo brasileiro, Pedro Montenegro, do Itamaraty, afirmou que a criação da CNIV ainda está “em debate” e não está “madura” para o Estado.

Para Paulino Montejo, da Apib, “não há muita vontade por parte do governo, que não quer ter atrito com os militares”. Na visão de Marlon Weichert, do MPF, a postura da atual gestão “representa as dificuldades de um governo de frente ampla”. “Nós somos muito cientes das dificuldades, mas também muito otimistas com a possibilidade e com o potencial que uma CNIV tem para fazer a diferença na história do país”, diz o procurador.

A Pública contatou os ministérios dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos (MDHC), questionando o posicionamento de ambas as pastas em relação à criação da CNIV e que ações foram adotadas em relação ao tema. O MDHC disse que a atribuição da pauta é do MPI. O Ministério dos Povos Indígenas não respondeu até a publicação da matéria. O espaço segue aberto para manifestação.

Reparações conquistadas

Iniciativas capitaneadas pelo MPF, por entidades indígenas e organizações não governamentais conseguiram reparações tanto no campo judicial quanto no campo da memória. Muitas das violações contra povos indígenas, no entanto, nunca tiveram ações concretas e outras tantas sequer foram reveladas.

Na Comissão de Anistia, instalada em novembro de 2002, três casos relacionados a povos indígenas prosperaram.

Presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, pediu perdão de joelhos para lideranças Krenak e Guarani Kaiowá. Créditos: MDHC/Youtube

Em 2014, 16 indígenas Suruí-Aikewara foram anistiados em caráter individual, recebendo 120 salários mínimos cada um. O caso é relacionado ao combate do regime militar à Guerrilha do Araguaia, no Pará. Mesmo sem nenhuma relação com o movimento guerrilheiro, os Suruí, cujo território é próximo do local onde o grupo se estabeleceu, foram vítimas de maus tratos, violência e tortura, além de serem obrigados a colaborar na caçada dos guerrilheiros, que foram massacrados. Além da anistia individual, os indígenas também pleitearam uma reparação coletiva, com a ampliação de seu território, demarcado durante a ditadura, o que ainda não ocorreu.

Mais recentemente, em 2024, a Comissão anistiou coletivamente, de maneira inédita, dois povos: os Krenak (MG), e os Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Guyraroká (MS). Com as reparações, a Comissão fez um pedido público de perdão em nome do Estado brasileiro para ambos os povos, além de ter recomendado a demarcação dos territórios e medidas nas áreas de saúde, economia, cultura e memória.

Os Guarani Kaiowá foram expulsos de seus territórios na ditadura dentro de uma política adotada pelo Estado brasileiro de remoção de comunidades e alocação em pequenas reservas indígenas entre 1940 e 1980. Eles lutam pela demarcação de seu território, que teve o processo anulado pelo STF em 2014, com base na tese do Marco Temporal.

Já os Krenak, além de remoções forçadas, torturas, maus-tratos e assassinatos, foram confinados na própria terra e viram seu nome virar sinônimo de encarceramento de indígenas.

Em Resplendor (MG), a ditadura criou o Reformatório Krenak, onde ficaram presos mais de cem indivíduos de ao menos 15 etnias, muitos sem acusação formal, ou por motivações como “vadiagem” e consumo de álcool. Depois do fechamento do que a CNV chamou de “campo de concentração”, o regime militar alocou os Krenak em Carmésia (MG), no que ficou conhecido como Fazenda Guarani. Lá também houve o encarceramento de indígenas de diversas etnias, parte deles reprimidos pela empresa Aracruz Celulose.

As violações do regime contra os Krenak também são tema de duas ações judiciais movidas pelo MPF. A mais recente, de março, pede indenizações coletiva e individuais para os Krenak que foram expulsos de seu território e passaram a viver em uma fazenda no interior de São Paulo. Ainda não há decisão em relação a esse pleito.

A segunda ação, movida em 2015, já teve sentenças na primeira e segunda instância, com condenação do Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak. Além de uma cerimônia de reconhecimento das violações e medidas relacionadas à degradação ambiental e preservação do idioma, o Judiciário também determinou a conclusão da identificação e delimitação da TI Sete Salões, o que ocorreu em 2023. O território ainda aguarda portaria declaratória do Ministério da Justiça.

Uma outra ação, na seara penal, tentava responsabilizar criminalmente o ex-capitão da Polícia Militar de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro pelo crime de genocídio contra os Krenak. O militar, no entanto, morreu em 2023, antes que a ação fosse julgada.

Além das etnias contempladas pela Comissão da Anistia, os Waimiri-Atroari receberam decisões judiciais favoráveis em dois casos. Em 2018, uma decisão liminar reconheceu violações contra o povo na abertura da BR-174 (Manaus-Boa Vista) pelo regime militar, nas décadas de 1970 e 1980, quando a população caiu de 3 mil para 332 indígenas. O processo está em fase de conciliação. No ano passado, o Judiciário reconheceu violações relacionadas à inundação de áreas durante a construção da usina hidrelétrica de Balbina.

Em 2019, os povos Tenharim e Jiahui, afetados pela construção da Transamazônica (BR-230) no sul do Amazonas, receberam decisão judicial favorável em ação civil pública movida pelo MPF, mas a sentença acabou suspensa. A construção da Transamazônica teve a participação da Paranapanema, empresa de extração mineral que teria mantido indígenas em “semi-escravidão” na ditadura, como relevou a Pública no especial “Empresas cúmplices da ditadura”. Indígenas Tukano e Waimiri-Atroari também foram afetados pela ação da empresa. Esse ano, a Justiça Federal manteve parte da condenação.

O MPF também moveu ação civil pública relacionada às violações sofridas pelos Xavante da TI Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Além de Funai, União e Mato Grosso, 13 herdeiros da fazenda Suiá-Missu foram acionados, incluindo o empresário bilionário Rubens Ometto, da Cosan. Em um primeiro momento, os indígenas foram assassinados ao tentar resistir à invasão de seu território e submetidos a condições análogas à escravidão. Depois, foram removidos em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para outro território no estado, com quase uma centena de pessoas morrendo no processo.

Há ações relacionadas a outros povos, incluindo os Avá-Guarani, afetados pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu; os Avá-Canoeiro, que chegaram a ser considerados extintos após um processo de deslocamento forçado; os Panará, afetados pela construção da BR-163 e por remoções forçadas, os primeiros a obter condenação do Estado brasileiro; os Akrãtikatejê (Gavião da Montanha), removidos de suas terras para a construção da hidrelétrica de Tucuruí; e os Cinta-Larga, vítimas de genocídio no início da década de 1960.

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