Seria visto como um disparate global se o Brasil resolvesse retaliar o governo dos Estados Unidos toda vez que o Federal Reserve, o banco central norte-americano, eleva suas taxas de juros — uma decisão de política monetária com efeitos planetários, que inevitavelmente respingam sobre a economia brasileira. Não menos insólita soa a investigação comercial deflagrada pelo governo de Donald Trump contra o Brasil, baseada, por exemplo, em uma suposta prática desleal “com relação a serviços de pagamento eletrônico”.
Decisões institucionais soberanas, contudo, como a criação do Pix no Brasil ou o reajuste da taxa de juros nos Estados Unidos, não deixam de ser legítimas apenas porque provocam efeitos colaterais em interesses de outras nações.
“Não há nada de desleal nessa história”, afirma a CartaCapital Ana Rosa Ribeiro de Mendonça, professora assistente da Universidade Estadual de Campinas, com experiência na área de Economia Monetária e Financeira. “É o Banco Central do Brasil decidindo sobre a forma como a moeda é transacionada na economia brasileira.”
A abertura da apuração consta de um comunicado do representante de Comércio dos Estados Unidos, Jamieson Greer, em um documento intitulado Investigação da Seção 301 sobre Práticas Comerciais Desleais no Brasil. Não houve menção direta ao Pix, mas o alvo é inequívoco:
“O Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo”.
Há justificativas óbvias para o incômodo dos norte-americanos com o Pix. Entre elas, o fato de gigantes como Mastercard e Visa terem perdido terreno no Brasil com a popularização do sistema de pagamento instantâneo — sem contar novidades como o Pix parcelado.
Não se sabe se a administração Trump escarafunchou os arquivos sobre os meses que antecederam o lançamento do Pix, em 2020. Naquele ano, a Meta, controladora do Facebook e do Instagram, buscava implementar um sistema eletrônico de pagamentos a partir do WhatsApp, outro de seus ativos. Seria possível mandar e receber dinheiro a partir de cartões cadastrados.
O projeto, porém, foi adiado por decisão do Banco Central e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Era preciso, justificou o BC, avaliar riscos operacionais, garantir a estabilidade do Sistema de Pagamentos Brasileiro e analisar possíveis impactos concorrenciais. A funcionalidade do WhatsApp Pay só chegou ao público posteriormente, já com a concorrência do Pix.
Mendonça relembra que um dos primeiros decretos do atual mandato de Trump, assinado em 23 de janeiro, proibiu o Federal Reserve de desenvolver uma moeda digital — um tema sobre o qual o banco central norte-americano não havia avançado de fato.
“Há centenas de países no mundo todo se movimentando para a criação de suas moedas digitais”, destaca. “Esse movimento é muito mais acelerado no mundo em desenvolvimento do que no desenvolvido. Entre as economias grandes, o caso mais emblemático é o da China.”
Em junho, o banco central chinês prometeu expandir o uso internacional do yuan digital e defendeu um sistema monetário multipolar, com o objetivo declarado de reduzir a dependência global do dólar e “proteger a estabilidade financeira internacional”.
Segundo a economista, a postura de Trump revela desconforto com mecanismos estatais relacionados à moeda — embora o Pix, tecnicamente, não seja uma moeda digital. Concretamente, no entanto, não há sentido na obsessão do republicano de “legislar” sobre órgãos que conduzem a gestão monetária em qualquer país.
Tudo isso pode funcionar como discurso para tentar justificar decisões como a taxação de 50% sobre importações de produtos brasileiros — apesar do massivo superávit que Washington acumula na relação comercial com o Brasil nos últimos 16 anos.
O mesmo raciocínio ajuda a entender por que a gestão Trump, fervorosa em seu negacionismo climático, acusa o Brasil de falhar no combate ao desmatamento ilegal, supostamente em prejuízo da “competitividade dos produtores americanos de madeira e produtos agrícolas”. Ou ainda por que o representante de Comércio norte-americano incluiu na lista de queixas a venda de produtos falsificados na Rua 25 de Março, em São Paulo — algo não muito diferente do que se encontra nas ruas de Manhattan.
“A referência a pagamentos instantâneos, 25 de Março e desmatamento é tacanha”, resume Mendonça. “Mas mostra a tentativa de avançar em uma linha de argumentação que, de alguma forma, possa respaldar decisões tão arbitrárias.”