“Em todo caso, o futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim”
Clarice Lispector
Uma coisa é certa: a extrema-direita só consegue sobreviver onde não haja democracia.
Emblemático o caso do Brasil: com eleições livres, o fascismo foi derrotado.
Perdeu, mas tentou deslegitimar as eleições antes e depois do pleito, recorrendo à violência física em 8 de janeiro de 2023 e planejando atentados mortais antes daquela data.
Trump não foge à regra: ao perder as eleições, seus apoiadores invadiram o Congresso estadunidense, em 6 de janeiro de 2021.
Reeleito 4 anos depois daquela derrota, parece ainda mais consciente de que seu projeto autoritário só se pode realizar em ambiente não-democrático.
Para isso, obteve da Suprema Corte impunidade para todos os atos que praticados no exercício da presidência.
Também manietou o Congresso, principalmente para a defesa do grande capital, que financia as campanhas milionárias naquele país, mas também pelo poderoso lobby sionista, que igualmente as custeia.
Para se ter uma ideia da força deste último, uma moção para reduzir o apoio financeiro estadunidense a Israel foi derrotada naquela Câmara, na semana passada, por mais de 422 votos a 6…
Ao fazerem-no, os juízes Giovanni Falcone, Paolo Borselino e Francesco Livatino pagaram com a vida, em atentados na Sicília, no início da década de 90.
Nesse sentido, vale notar que, ao impor sanções ao Brasil, como a Globo bem demonstrou em reportagem, houve gigantesca especulação financeira por parte de alguém que sabia o que iria acontecer e que comprou entre 3 a 4 bilhões de dólares em torno de duas horas antes do anúncio, vendendo-os com ágio extraordinário sobre o capital investido, após a desvalorização do Real decorrente daquelas medidas arbitrárias.
Convém notar que Trump, segundo a legislação estadunidense, não tem poder para utilizar tarifas como sanções ao Poder Judiciário de um outro país.
Ao avançar sobre competência do Congresso, mais uma vez, violou o sistema de freios e contrapesos entre os Poderes, base da democracia, com a finalidade implementar o projeto ditatorial que deseja.
Qual a razão dessa premência?
Para satisfazer seus financiadores multimilionários (entre os quais os proprietários das big techs), em primeiro lugar, mas, provavelmente, também por motivos pessoais.
Atualmente, a maior grita naquele país do Norte é sobre a liberação dos chamados “arquivos Epstein”.
Jeffrey Epstein foi um ex-professor que, num passe de mágica, se tornou um dos maiores milionários do país, tendo a maior residência de Nova York, jatos particulares, iates e até uma ilha.
Na ilha paradisíaca, recebia de Bill Clinton a Donald Trump. Lá, também se encontravam jovens, algumas das quais menores de idade, podendo chegar a ter apenas 13 anos. Em festas regadas a álcool e drogas, Epstein fotografava e filmava os convidados em situações impublicáveis – para posteriormente, indicam investigações, chantageá-los.
Epstein foi condenado e preso por corrupção de menores, sob fortes suspeitas de que teria se suicidado na prisão, enforcando-se com lençóis – justamente nos 2:16 em que a câmera de segurança do corredor da prisão esteve desligada. Coincidências acontecem; crimes, também…
Daí, sancionar o Brasil de forma tão violenta, pois o exemplo do país do Sul, de independência do Judiciário, não lhe é nada favorável, política e individualmente…
De fato, chega a ser subversivo que um país latino-americano traga à luz um exemplo de democracia real. Não fake, como ao gosto das big techs, cuja denominação trai o fato de que são meras máquinas de publicidade, nas quais a sociedade civil conseguiu inserir conteúdos de cidadania.
Essa conduta exemplar escancara a hipocrisia do país que se quer pátria e modelo de democracia, sem ser uma coisa, nem a outra. Subverte-se a lógica colonial, em que o Sul se deveria sentir inferior ao Norte, para que pudesse ser colonizado e permitir ser pilhado.
Em sincronicidade, no dia 20 de julho comemorou-se o centenário de nascimento de Frantz Fanon, o médico psiquiatra martinicano, um dos políticos que mais teorizou e viveu a descolonização da África.
A propósito, no número de junho da revista Cult, Patrícia D. Menezes procede a interessante reflexão sobre o colonialismo:
“Poucos casos de soberba foram tão bem-sucedidos e tiveram consequências tão globais quanto o colonialismo moderno. A soberba do colonizador foi tamanha que lidamos até hoje com seus efeitos, em particular com a sociedade extremamente desigual que se consolidou no Brasil a partir dos discursos de superioridade.”
Somos torturados por Trump e suas arbitrariedades? Pois bem, em Por uma revolução africana (editora Zahar), Frantz Fanon nos recorda: “A tortura é inerente ao todo da estrutura colonialista”.
Mais adiante, reforça: “… os Estados Unidos acreditam que as duas Américas constituem um mundo regido pela doutrina Monroe, cuja aplicação é confiada às forças norte-americanas. O único artigo dessa doutrina estipula que a América pertence aos americanos, ou seja, ao Departamento de Estado.”
Não podemos prestar melhor homenagem a Fanon do que demonstrar ao governo de Trump que a era das colonizações se extinguiu. Paulo Freire provou que ninguém só ensina e ninguém só aprende, que as relações interpessoais e as internacionais são boas quando há diálogo, troca e respeito mútuo, sem lições de uma parte ou de outra.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.