Do sucesso à demissão: empresas têm se incomodado com os ‘blogueiros CLT’
Virou mania nacional criar conteúdo nas redes sociais sobre a própria rotina. Em novembro, o g1 mostrou como esse hábito passou a fazer parte da vida do trabalhador, com o surgimento dos “blogueiros CLT”.
Mostrar os perrengues do dia a dia deu fama a uma porção de novos influenciadores que passaram a tirar uma grana extra com a internet. Mas, recentemente, uma nova faceta desse fenômeno apareceu: o incômodo das empresas com quem cria conteúdo, que tem levado inclusive a demissões.
A psicóloga Thamiris Castro, de 30 anos, atuou por quase dois anos em presídios no Rio de Janeiro. Em abril do ano passado, decidiu publicar uma trend nas redes sociais compartilhando curiosidades sobre sua profissão.
Depois que seus vídeos sobre a rotina no trabalho viralizaram no TikTok, ela passou a registrar o dia a dia sem roteiro, iluminação ou filtros. Em junho deste ano, cerca de um ano e dois meses após o primeiro vídeo, acabou sendo demitida.
Thamiris desconfia que o uso das redes sociais tenha influenciado, já que sua chefe começou a segui-la nas redes sociais uma semana antes do desligamento.
“Nunca recebi advertência, ninguém disse que eu estava errada. Depois que aconteceu, pensei: se fosse um problema, poderiam ter me dado a chance de escolher. Faltou diálogo, poderia ter havido uma conversa ou negociação, mas isso não aconteceu”, afirma.
A psicóloga explica que teria ajustado o conteúdo se tivesse sido avisada: “Talvez eu não parasse, mas mudaria algumas coisas, como não mostrar crachá ou citar casos específicos. O combinado não sai caro”, explica.
Thamiris Castro atuava como psicóloga de presídio e compartilhava a rotina nas redes sociais.
Arquivo Pessoal/Reprodução Redes Sociais
🔎 Legalmente, a empresa não pode proibir ou limitar as publicações dos empregados nas redes sociais. Mas o trabalhador também não pode divulgar informações sigilosas ou que prejudiquem a imagem da empresa.
Inclusive, o trabalhador pode até ser demitido por justa causa em casos de má conduta nas redes sociais, especialmente quando as publicações afetam a reputação da empresa. (entenda mais sobre o tema)
A atenção nas redes não se restringe aos “blogueiros CLT”. A influenciadora e profissional de marketing Geovanna Pedroso, de 23 anos, trabalhou por cerca de quatro anos em sua área, passando por agências, consultorias e empresas de tecnologia.
Em 2019, começou a produzir conteúdo digital como hobby, focado em comportamento, moda e inovação. Enquanto estudava e trabalhava, mantinha um “segundo turno” como criadora e, com o tempo, acabou se profissionalizando.
“Sempre foi uma válvula de escape. Eu mostrava os produtos que comprava, como blush e iluminador. Muitas meninas se identificaram e começaram a me seguir para acompanhar minha rotina”, conta a influenciadora.
“Sempre levei como um hobby, nunca como um trabalho principal. Gravava vídeos à noite ou nos fins de semana, sempre depois do expediente”, diz Geovanna.
Mesmo sem expor seu emprego nas redes, Geovanna conta que sofreu represálias de colegas e chefes. “Cheguei a ouvir piadas em reuniões, como: ‘vamos fazer igual à Geovanna, postar uma publi agora, porque se a gente for demitido, pelo menos teremos alguma garantia’.”
Geovanna Pedroso é uma das influenciadoras impactadas pela onda de demissões dos “blogueiros CLTs”.
Arquivo Pessoal/Reprodução Redes Sociais
“Quando ouvi o primeiro comentário nesse tom pejorativo, senti medo. Me senti coagida e percebi que talvez minha posição dentro da empresa estivesse ameaçada”, relata.
Em setembro de 2023, a empresa promoveu um corte de funcionários e ela foi desligada. O trabalho como influenciadora não foi citado como motivo, mas outros colegas que também produziam conteúdo digital acabaram demitidos.
Desde então, sua carreira no marketing foi interrompida e a internet virou sua única fonte de renda. A nova fase, porém, é marcada pela instabilidade. “Consigo me manter, mas não tenho segurança financeira. Em alguns meses fecho boas publicidades e ganho bem. Em outros, fico no limite”, diz.
Diferentemente dos grandes influenciadores, Geovanna não tem contrato com uma agência de marketing que a apoie na carreira. Por isso, busca sozinha parcerias e publicidades. “O que era um hobby acabou virando uma obrigação”, conclui.
🤔 “Blogueiros CLTs” podem ser aliados
Para Geovanna, muitas empresas ainda veem os funcionários que produzem conteúdo como uma ameaça — especialmente quando esses trabalhadores conquistam mais visibilidade do que a própria marca.
Ela acredita que falta compreensão no ambiente corporativo sobre o novo perfil dos trabalhadores e como os “blogueiros” podem ser aliados, ajudando as próprias empresas.
“Acredito que seja mais por uma questão de proteger a imagem e os interesses da empresa. Mas, muitas vezes, essas conversas não se alinham. Se a empresa está bem estruturada, não precisa enxergar esse funcionário influenciador como ameaça”, explica.
Para Leandro Oliveira, diretor da Humand no Brasil e especialista em gestão de pessoas, essa postura defensiva mostra falta de maturidade para lidar com a era digital e, principalmente, a perda de uma oportunidade estratégica.
“A empresa que enxerga isso como risco está perdendo espaço. Está desperdiçando uma força de trabalho que já existe internamente e que poderia ser um catalisador em áreas normalmente difíceis de alcançar”, afirma.
Segundo o especialista, algumas empresas ainda cultivam a ideia de não ter presença ativa nas redes sociais. Mas, como muitos clientes estão no ambiente digital, é fundamental repensar essa estratégia.
Outro ponto levantado por Leandro é valorizar o que os colaboradores já sabem fazer, em vez de gastar tempo e dinheiro em algo sem retorno. Ou seja: em vez de contratar um influenciador de fora, aproveitar o próprio trabalhador e remunerá-lo por isso.
Se o colaborador já tem presença digital forte, por que não unir forças e transformar isso em parte do trabalho?
“É uma questão de bom senso: se a empresa deseja que ele produza conteúdo, não pode esperar que faça isso apenas no tempo livre. O ideal é reconhecer esse esforço como parte da cultura da organização e remunerá-lo”, reforça.
Leandro ainda critica o modelo de comunicação “top-down”, em que tudo parte do alto escalão e não há espaço para protagonismo dos trabalhadores da base. “Empresas que não criam canais de escuta e participação interpretam mal a visibilidade desses colaboradores”, diz.
Para Dado Schneider, doutor em comunicação pela PUC/RS, nem mesmo o conceito de “blogueiros CLT” é exatamente novo. O fenômeno apenas ganhou novos formatos com a expansão da era digital.
Segundo ele, há diferentes perfis de influenciadores CLT:
Os que promovem a empresa de forma espontânea;
Os que usam o nome da empresa para fortalecer a imagem pessoal;
Os que apenas seguem tendências, sem estratégia definida.
“Os costumes mudam mais rápido do que nossa capacidade de entender e regular. Por isso, muitas empresas preferem simplificar: se a pessoa é blogueira, afastam logo, para não incomodar os demais”, explica.
Schneider compara os influenciadores à proibição de telas em salas de aula. Para ele, o Brasil tem a tendência de simplificar demais: em vez de buscar soluções, prefere simplesmente eliminar o “problema”.
“Essas pessoas começaram a divulgar as empresas ou a se promover por meio delas, e alguns cresceram tanto que a primeira reação foi afastá-los, quando, na verdade, poderiam estar ajudando muito”, afirma.
Além disso, as empresas ainda não conseguem acompanhar o ritmo das transformações digitais. Para o especialista, o principal motivo das demissões nem sempre é a quebra de regras, mas ressentimentos internos.
“A maior parte das demissões dos ‘blogueiros CLT’ acontece por inveja ou ciúme profissional. Alguns realmente passam dos limites, mas a maioria mais ajuda do que atrapalha”, diz o especialista.
Muitas vezes, o blogueiro tem mais visibilidade do que colegas em cargos mais altos. E isso incomoda.
Há ainda o alerta para o risco enfrentado pelos criadores de conteúdo demitidos, que podem ter dificuldade de se recolocar no mercado, especialmente em setores mais conservadores. Isso acontece por causa da chamada “lista negra”.
Ou seja: quando um trabalhador é desligado, empregadores do setor se comunicam, relatam o motivo e o incluem em uma lista para não contratá-lo.
“Isso sempre existiu, principalmente com profissionais vistos como ‘perigosos’ ou ‘incômodos demais’. Acho essa prática injusta: o trabalhador tem o direito de errar em uma empresa e dar certo em outra. Mas, infelizmente, acontece”, conclui.
‘Blogueiros CLTs’ mostram rotina e perrengues nas redes
🤑 Nova fonte de renda
Para Jéssica Palin Martins, especialista em saúde emocional corporativa, as redes sociais são apenas mais uma forma de renda extra, o que não deveria ser visto como problema, desde que não prejudique o desempenho profissional.
“Tem gente que vende produtos de beleza, faz trufas, bolos no pote, trabalha como garçom à noite. Rede social é só mais uma forma de renda extra. Se não atrapalha a entrega, está tudo certo”, explica a especialista.
Segundo ela, o problema aparece quando não há entrega de resultados ou quando a exposição serve para atacar a própria empresa: “Se estiver tudo acordado e for positivo, ótimo. Caso contrário, é justo reavaliar”, diz.
Não há proibição legal para que um funcionário CLT tenha renda extra como influenciador digital. No entanto, é importante verificar se o contrato de trabalho prevê algum impedimento. (entenda mais sobre o tema)
🎯 Dá para virar o jogo?
Yuri Santos trabalhou como assistente de social media e aparecia com frequência nos conteúdos da própria empresa. Após quase dois anos, foi desligado — prefere não detalhar o motivo por questões de sigilo contratual.
“Eu era uma figura pública dentro da empresa e também nas minhas redes. Quando saí, muita gente se surpreendeu”, diz o jovem de 23 anos, formado em marketing.
Yuri afirma que, antes desse emprego, não era uma pessoa ativa nas redes. “Existe um antes e depois de entrar nessa empresa. Eu não gostava de aparecer, mas passei a curtir e a produzir conteúdo. Gosto de gravar vídeos e aprendi tudo isso lá dentro”, completa.
Yuri Santos compartilhava o trabalho nas redes sociais e foi desligado após dois anos.
Arquivo Pessoal/Reprodução Redes Sociais
Se há um ponto positivo é que a visibilidade que conquistou abriu novos caminhos: após o desligamento, usou LinkedIn e Instagram para anunciar a saída e, com isso, atraiu novas oportunidades. Hoje, já está empregado em uma marca do setor de beleza.
Além do novo emprego CLT, Yuri mantém um perfil pessoal ativo nas redes e ainda administra, com amigas, uma segunda conta sobre cultura, moda e entretenimento.
“É uma jornada tripla. Gravo nos fins de semana, edito à noite e programo os posts. Às vezes durmo só 1h da manhã para acordar às 6h. Mas eu amo essa rotina”, conta Yuri, que ainda não pensa em largar a CLT para ser influenciador.
Já a psicóloga Thamiris Castro foi surpreendida por uma onda de apoio dos seguidores e viu aumentar a procura por atendimentos após a demissão. Ela passou a atender pacientes que a conheceram pelas redes sociais e encontrou uma nova fonte de renda.
“Foi terapêutico. Eu achava que minha exposição podia ser um problema, mas foi justamente o que me aproximou dessas pessoas. Atendo jovens que assistem aos meus vídeos e se identificam com minha linguagem”, afirma.
Além dos atendimentos, ela também orienta estudantes, cobrando um valor simbólico por conversas, entrevistas acadêmicas e palestras. Thamiris ainda não sabe o rumo da carreira, mas, por enquanto, quer aproveitar o momento na internet.
“Ainda tem muita coisa se encaixando na minha cabeça. É um momento de descobertas e também de cuidado. Trabalhar em casa tem me trazido novas possibilidades, então vou seguir assim enquanto fizer sentido e enquanto eu estiver gostando”, conta.
❌ O que o trabalhador NÃO pode compartilhar
Carolina Dostal, diretora regional da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-SP), alerta que é essencial ter alguns cuidados ao publicar conteúdos relacionados ao trabalho nas redes.
🚫 Não publicar dados confidenciais da empresa;
🚫 Evitar compartilhar produtos ou serviços que são lançamentos;
🚫 Não postar a tela do computador;
🚫 Não divulgar reuniões estratégicas;
🚫 Evitar abordar assuntos polêmicos;
🚫 Tomar cuidado com erros de português;
🚫 Não compartilhar notícias falsas;
🚫 Não falar mal do patrão ou da empresa publicamente;
🚫 Não compartilhar fofocas do trabalho;
🚫 Não publicar conteúdos que são contra ao posicionamento da companhia;
🚫 Evitar qualquer informação que possa prejudicar a imagem do empregador.
“O trabalhador precisa estar alinhado com a empresa, compartilhando os mesmos valores e a mesma cultura”, explica Carolina Dostal. Para ela, os empregadores devem enxergar o funcionário influenciador como um benefício.
A especialista defende que o empregador ofereça treinamento aos funcionários que publicam conteúdos relacionados ao trabalho nas redes sociais. Já o colaborador precisa organizar bem a rotina entre o emprego CLT e a vida de influenciador.
“O que não pode é comprometer a atividade principal nem gerar concorrência ou danos à imagem da empresa”, afirma a advogada trabalhista Juliane Facó, sócia do Pessoa & Pessoa Advogados.
A especialista reforça que o trabalhador não deve expor informações confidenciais nem conteúdos que prejudiquem a imagem da empresa. Além disso, é fundamental preservar a intimidade e a privacidade de colegas, clientes e prestadores de serviço.
Trabalho registrado x Influenciador digital: conheça os ‘Blogueiros CLTs’

Repost

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *