Um país que tem energia de sobra mas paga caro por ela, e ainda corre o risco de sofrer um apagão. Bem-vindo ao Brasil.
A sobra é relativa. Durante o dia ela de fato existe, e isso virou um problema. Mas não há folga quando o sol vai embora, o que é outra encrenca.
Convertendo para reais: já estamos pagando a mais para que não falte energia, e talvez tenhamos de pagar a mais porque está sobrando.
VEJA TAMBÉM:
-
Luz, gás e ônibus de graça, e uma estatal a socorrer. Alguém pagará
Quando sobra e quando falta energia
De manhã e à tarde, a produção de eletricidade é tanta que é preciso desligar usinas para não sobrecarregar o sistema. Desperdiçamos energia para garantir o equilíbrio entre oferta e demanda – e há uma ameaça de que ao menos parte do desperdício seja cobrada na conta de luz.
Quando cai a noite, dependemos do socorro de usinas térmicas para dar conta do consumo, principalmente se falta chuva e temos de poupar água nas hidrelétricas. É o caso agora. O auxílio tem preço, que pagamos na forma de adicionais na fatura – as “bandeiras tarifárias”.
Esse aperto não é novidade. O problema da abundância, sim.
O excesso vem do crescimento das fontes renováveis, à base de subsídios e da evolução tecnológica, que barateou a instalação. Nos últimos anos, testemunhamos a proliferação de painéis solares, em telhados ou grandes usinas, e parques eólicos.
Essa expansão ampliou a “folga teórica” entre oferta e demanda de energia. Hoje a capacidade instalada do Sistema Interligado Nacional (SIN) é de 214 gigawatts (GW). Há ainda mais de 40 GW da micro e minigeração distribuída, a MMGD – placas fotovoltaicas em casas e empresas. O consumo, enquanto isso, fica pouco acima de 80 GW nesta época do ano, ou próximo de 100 GW nos dias mais quentes do verão.
Acontece que nem toda a potência está disponível o tempo todo. Hidrelétricas, termelétricas e nucleares podem enfrentar restrições diversas. As eólicas dependem da intensidade do vento. Nas solares, a produção varia conforme a presença de nuvens no céu, e cai a zero no fim do dia.
VEJA TAMBÉM:
-
Enquanto Lula culpa “pilantras” por inflação, povo paga o dobro pela energia de Itaipu
Equilibrar produção e consumo é mais complexo com fontes renováveis
Garantir que a geração de energia acompanhe o consumo é tarefa do Operador Nacional do Sistema Elétrico. A depender da demanda, das usinas disponíveis e da capacidade de intercâmbio entre as grandes regiões, o ONS dispara ordens para este ou aquele gerador aumentar ou reduzir sua atividade.
Tem de ser assim porque, se há excesso de produção, a frequência da rede aumenta, como um motor muito acelerado, o que pode danificar equipamentos ou levar a desligamentos automáticos de usinas.
Se a geração é insuficiente, a frequência cai, como um motor que perde força ladeira acima. Pode haver blecautes localizados ou apagões em regiões inteiras, e se preciso o ONS derruba o fornecimento aqui e ali para evitar que o problema se alastre.
Essa gestão era mais simples quando tínhamos basicamente hidrelétricas, com termelétricas servindo de reserva de emergência. Ambas geram eletricidade a partir de grandes rotores, que têm inércia mecânica, capaz de manter a frequência estável por algum tempo. Seu fornecimento é, digamos, mais firme. O parque termelétrico ainda avança, mas o país praticamente abandonou o investimento em usinas de reservatório.
À medida que eólicas e solares ganharam relevância, a administração do sistema ficou mais complexa. Elas não dispõem de inércia natural e sua geração varia de forma mais brusca, obrigando o ONS a reagir muito mais rápido, acionando ou dispensando outros geradores.
Transmissão de energia não acompanhou o aumento da geração
O aumento da complexidade era natural e esperado. Mas há complicadores.
Um deles é que a infraestrutura de transmissão de energia não acompanhou o aumento da geração. Mal comparando, é o que você vê no trânsito: há cada vez mais veículos circulando sobre o asfalto de sempre.
Uma das razões para o descompasso é que é mais fácil conseguir autorização para construir parques eólicos e solares do que para erguer linhões de centenas ou milhares de quilômetros no meio de reservas ambientais e comunidades.
Grande parte da produção eólica e solar brasileira se dá no Nordeste, que não consome toda essa energia. O SIN permite o envio a outras regiões e o Sudeste é o destino óbvio dos excedentes, mas há limitações estruturais nesse intercâmbio.
Há outras fragilidades. Em agosto de 2023, mais de 30% do país ficou sem luz depois de falhas numa linha de transmissão no Ceará e em equipamentos de controle de tensão de usinas eólicas e solares na mesma região.
O sistema, em suma, está mais vulnerável a apagões.
Operador desliga usinas solares e eólicas, que estão cobrando o prejuízo
Outro complicador é que o ONS não pode atuar sobre os micro e minigeradores distribuídos – aqueles que produzem energia no telhado de casa ou se associaram a outros para produzir nas chamadas fazendas solares. Afinal, eles são antes de mais nada consumidores. Ou deveriam ser – há suspeitas de que empresas estejam usando o modelo para vender energia, o que é proibido.
Por isso, quando precisa desativar parte da produção, o ONS mira a geração centralizada, principalmente as usinas solares e eólicas de médio e grande porte. É como se, em dia de trânsito pesado, apenas os ônibus tivessem de parar no sinal vermelho.
No setor, o corte de geração determinado pelo ONS é chamado de curtailment. Nunca houve tanto. Em agosto, esse tipo de ordem afetou 26% da produção centralizada dessas duas fontes, um recorde, segundo dados do ONS compilados pelo Itaú BBA. Usinas eólicas tiveram de cortar 23% da produção e solares, 38%.
O segundo domingo daquele mês, Dia dos Pais, foi emblemático. Com sol a pino sobre os telhados e baixo consumo na indústria e no comércio, o ONS chegou a cortar 93% da geração nos parques eólicos e solares perto da hora do almoço.
Consumidor pode pagar por energia não gerada
Segundo a Volt Robotics, de janeiro a agosto o corte nesses parques chegou a 17%, mais que o triplo do registrado em 2024. Quem não gosta disso são os geradores. A mesma consultoria calcula que eles perderam R$ 6 bilhões desde outubro de 2021 com o curtailment, dos quais R$ 3,2 bilhões apenas neste ano.
Mais da metade dos cortes de agosto ocorreram por excesso de oferta. Quase 40%, para garantir a confiabilidade dos equipamentos da rede. E uma minoria, por restrições externas, como falhas no sistema de transmissão – e só nesse caso o ressarcimento aos geradores é garantido. Descontentes, vários estão cobrando o prejuízo na Justiça.
O governo estuda o que fazer. Nos corredores de Brasília, lobbies de diferentes ramos do setor elétrico empurram a culpa uns para os outros.
VEJA TAMBÉM:
-
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas
Se houver devolução às empresas geradoras, parcial ou total, fatalmente será repassada à tarifa. É o que indica a experiência das últimas décadas.
A conta de luz, assim, pode subir por causa de energia não gerada. Não seria novidade.
Lá em 2001, em um dos capítulos mais emblemáticos da história surrealista do setor elétrico, fomos obrigados a poupar energia. Nos anos seguintes, tivemos de pagar tarifa extra para recompor o faturamento que as companhias elétricas perderam no racionamento.