Investimentos de R$ 60 bilhões previstos pela indústria automobilística e de autopeças para serem realizados até 2030 podem não se concretizar e resultar no fechamento de até 50 mil postos de trabalho com carteira assinada. É o que vai acontecer, segundo montadoras, caso o governo atenda a um pedido da chinesa BYD.
A empresa solicita uma redução no Imposto de Importação de veículos desmontados, o que despertou reação contrária de fabricantes tradicionais instalados no país. A polêmica deve ser decidida nesta quarta-feira (30) pelo Comitê Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (Camex).
A BYD – que está investindo R$ 5,5 bilhões para implantar uma fábrica em Camaçari (BA), no antigo complexo da Ford – solicitou ao governo uma redução do imposto de importação sobre seus kits de veículos: de 20% para 10% em carros híbridos e de 18% para 5% nos elétricos.
A proposta, que está sendo avaliada no Palácio do Planalto pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador da Bahia, criaria uma situação tributária mais vantajosa no Brasil do que na própria China.
Do outro lado, as montadoras já estabelecidas e toda a cadeia de autopeças alertam que a mudança nas regras no meio do jogo pode forçar uma reavaliação completa dos investimentos anunciados e de geração de empregos com carteira assinada.
Em jogo não estão apenas cifras bilionárias, mas a própria natureza da indústria nacional: executivos do segmento apontam que o risco é que o Brasil se transforme em uma mera plataforma de montagem, uma “maquila” de baixa complexidade, sacrificando empregos qualificados e desenvolvimento tecnológico local.
A BYD anunciou o Dolphin Mini produzido na Bahia como seu primeiro “carro 100% elétrico brasileiro”. Mas, ao menos por enquanto, o que há de mais brasileiro no modelo é o endereço da montagem final. Na prática, é um veículo em grande parte chinês. E pode continuar sendo, caso o governo Lula atenda ao pedido da montadora chinesa.
A disputa entre as montadoras já instaladas e a fabricante chinesa ocorre em um momento delicado das relações comerciais globais.
A reunião do Camex acontece apenas dois dias antes da entrada em vigor de novas tarifas de 50% impostas pelos Estados Unidos a produtos brasileiros, em um sinal do crescente protecionismo global. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro tem dado sinais de uma maior aproximação com a China, um regime com forte planejamento central e práticas comerciais frequentemente questionadas.
Setor diz que R$ 60 bilhões em investimentos e 50 mil empregos estão em risco
As implicações econômicas da decisão podem ser grandes, apontam as montadoras. Dos R$ 180 bilhões em investimentos planejados, as montadoras alertam que R$ 60 bilhões podem ser cortados caso a proposta seja aprovada. O impacto no emprego seria igualmente severo. As fabricantes de veículos estimam que 10 mil contratações diretas deixariam de ocorrer e que outros 5 mil postos de trabalho atuais estariam em risco.
O efeito se estenderia por toda a cadeia produtiva, uma vez que a indústria automotiva possui um grande efeito multiplicador. Carta enviada pelos CEOs de quatro grandes montadoras – Volkswagen, Stellantis, GM e Toyota – ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aponta que para cada emprego fechado em uma linha de montagem, outros dez podem ser eliminados entre os fornecedores de autopeças e serviços. Pelas contas do setor, o corte total poderia chegar a 50 mil postos de trabalho.
Alguns sinais de retração já apareceram, com o fechamento de 600 vagas em junho. O volume de carros importados apenas no primeiro semestre, de 228,5 mil unidades, já equivale à produção anual de uma fábrica de grande porte com 6 mil funcionários, aponta a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
Ofensiva de carros chineses: invasão de importados e o domínio nos elétricos
A discussão ocorre em meio a uma ofensiva comercial sem precedentes das marcas chinesas no Brasil. Lideradas por BYD e GWM, e com o retorno da Geely após nove anos, as empresas exploram um mercado local pressionado por juros altos e inadimplência.
Os números demonstram a força dessa estratégia: as importações de carros no primeiro semestre de 2025 somaram US$ 3,4 bilhões, quase o total do ano passado inteiro, apontam dados da Secretaria do Comércio Exterior (Secex). Enquanto o emplacamento de veículos nacionais cresceu 2,6% nos primeiros seis meses do ano, o de importados saltou 15,6%, destaca a associação das montadoras.
A “invasão” é, em parte, uma “desova” de produção resultante da acirrada guerra de preços no mercado chinês e no Sudeste Asiático.
O resultado é uma presença cada vez mais dominante. Modelos chineses já representam 5,4% dos emplacamentos totais, à frente de marcas consolidadas como Renault e Nissan, apontam números da Federação Nacional de Distribuidores de Veículos Automotores (Fenabrave).
No segmento de eletrificados, o domínio é absoluto: BYD e GWM detêm 45% do mercado de híbridos e mais de 80% do de elétricos puros. Em junho, a BYD liderou as vendas no varejo em 104 cidades brasileiras, incluindo capitais como Brasília (DF) , Maceió (AL) e Porto Velho (RO).
Um estudo realizado em junho pela MegaDealer, consultoria especializada no varejo automobilístico, aponta que as marcas mais afetadas pela atuação da BYD e da GWM no mercado nacional são Jeep, Volkswagen, Chevrolet, Toyota e Hyundai. Essas marcas são as mais substituídas pelas chinesas na hora da compra de um carro novo.
O que é o sistema SKD? Pouco mais do que “apertar parafusos”
É nesse contexto que a proposta de redução tributária para kits se torna tão controversa. O sistema de montagem por kits, conhecido como SKD (Semi-Knocked-Down), é um modelo de produção de baixa sofisticação. Na prática, conjuntos pré-montados chegam da China e o trabalho local se resume a pouco mais do que “apertar parafusos”, com mínima contratação de fornecedores locais e geração limitada de empregos.
Para a Anfavea, isso criaria um “desequilíbrio concorrencial”. Indústrias estabelecidas operam com uma estrutura de custos completa — capital, mão de obra, logística e uma vasta cadeia de fornecedores locais —, enquanto o novo modelo permitiria a um importador “pilhar o mercado brasileiro com uma fachada de produção nacional”, nas palavras da associação.
Indústria reage e montadoras pedem previsibilidade nas “regras do jogo”
A reação do setor produtivo foi imediata e contundente. Na carta enviada a Lula, CEOs de montadoras do país (VW, GM, Stellantis e Toyota) foram diretos: a medida coloca em risco um ciclo virtuoso de fortalecimento industrial.
Eles argumentam que a importação facilitada de conjuntos não seria uma “etapa de transição” para uma produção mais robusta, mas um padrão que tenderia a se consolidar, atrofiando o processo produtivo nacional. O legado, segundo eles, seria de “desemprego, desequilíbrio da balança comercial e dependência tecnológica”.
Igor Calvet, presidente da Anfavea, reforça um ponto central para qualquer investidor de longo prazo: previsibilidade. “O setor automotivo se move pela previsibilidade e essa instabilidade é preocupante em um contexto global turbulento”, afirmou.
Segundo ele, os investimentos anunciados são cruciais para agregar valor, modernizar o portfólio de produtos e gerar empregos de qualidade. A mudança de regras com o jogo em andamento, defende, força as empresas a reavaliar seus planos.
A justificativa da BYD para o pedido
A BYD, por sua vez, defende a proposta. O vice-presidente, Alexandre Baldy, argumenta que não é justo que um produto que receberá custos adicionais no país, como mão de obra, tenha a mesma tributação de um veículo pronto. “Não podemos jogar dinheiro fora”, declarou.