Basta – CartaCapital

Com um histórico de 15 golpes de Estado, tentados ou consumados, desde a Proclamação da República, em 1889, o Brasil parece finalmente prestar contas com seu passado. “Após a condenação de Bolsonaro e seus comparsas, a chance de sofrer mais uma investida diminui bastante”, avalia o advogado ­Lenio Streck, procurador de Justiça aposentado, professor de Direito Constitucional da Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Em entrevista a CartaCapital, ele afirma que o Supremo Tribunal Federal agiu dentro dos limites constitucionais e rebate as teses levantadas pela defesa dos acusados, e endossadas no voto divergente do ministro Luiz Fux. “Nenhuma democracia madura comete haraquiri, perdoando quem tenta derrubá-la.”

CartaCapital: Como o senhor avalia o voto do ministro relator?
Lenio Streck: Foi mais detalhista do que eu esperava. Alexandre de Moraes ficou com uma responsabilidade enorme, em face das críticas e pressões externas, e fez um esforço hercúleo para ser objetivo e expor, de forma didática, todas as provas que pesam contra os réus.

CC: O Supremo tem competência para julgar Bolsonaro?
LS: Sim, com certeza. Em março deste ano, o STF decidiu, por 7 votos a 4, que a prerrogativa de foro, para os casos de crimes cometidos no cargo e em razão dele, deve ser mantida após a saída da função. O ministro Fux não deveria ter trazido de volta uma tese vencida no plenário. A chance de anular o processo com base nesse argumento é zero, isso não passa de retórica política. Da mesma forma, o Supremo optou por dividir seu grande volume de processos em duas turmas, formadas por cinco ministros cada uma, para agilizar os julgamentos. Somente se houver dois votos divergentes o caso é levado ao plenário. A Corte pode sempre mudar o seu regimento interno, que tem valor de lei ­processual, segundo a Constituição. A propósito, se Fux ficar isolado nessa divergência, ela não terá efeito algum. É como se não existisse: 4 a 1 é o mesmo que 5 a zero.

CC: Fux sustentou que não há golpe de Estado sem deposição de governo.
LS: Essa é uma tese batida, trivial. O crime é de tentativa de golpe de Estado. Desde a Constituição de 1824, no Brasil Império, usa-se o verbo tentar na definição. A propósito, isso não é uma invenção brasileira. No mundo todo, funciona assim: atos de planejamento já fazem parte da execução do crime. Se o golpe fosse bem-sucedido, nem sequer haveria este julgamento.

CC: A defesa de alguns réus pediu que o crime de tentativa de golpe de Estado absorva o de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Esse argumento tem base jurídica?
LS: Eu participei da elaboração dessa lei, acompanhei toda a discussão. São tipos penais distintos. Um trata da ofensiva para derrubar um governo legitimamente eleito, como tentar impedir a posse do presidente Lula. O outro refere-se a ações destinadas a restringir ou impedir o exercício dos poderes constitucionais, mediante violência ou grave ameaça, como uma intervenção para fechar o Tribunal Superior Eleitoral ou a devastação das sedes dos Três Poderes. Um crime só pode ser absorvido por outro, mais grave, quando o primeiro é um meio necessário para a prática do segundo.

“Ao aprovar uma anistia, o Congresso semeia a próxima crise institucional”

CC: A defesa de Bolsonaro alega que Moraes não poderia julgá-lo, por ser um dos alvos da trama golpista e pelo histórico de animosidade entre ambos. Cabe pedir o impedimento do juiz se o próprio réu semeou esse conflito?
LS: Um réu não pode escolher o seu juiz. Bolsonaro não entrou em confronto com Moraes por uma desavença pessoal – ele provocou o embate justamente porque o ministro era o relator do processo. Se outro ministro assumisse o caso, como Flávio Dino ou Gilmar Mendes, ele também se tornaria alvo. No Direito, há um princípio claro: “ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza”. Um sujeito acusado de matar os pais não pode, por exemplo, pedir clemência “por ser órfão”. É por isso que Moraes não está impedido de julgar o ex-presidente, e o STF já decidiu sobre isso.

CC: Os réus tentaram a todo ­custo invalidar a colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid.  Considerando as robustas provas reunidas pela Polícia Federal e pelo próprio STF, a delação seria essencial para a condenação ou apenas reforça um conjunto probatório já consistente?
LS: A delação não é prova, mas sim um meio para a obtenção de provas. Não se anula o que ficou comprovado. Fizeram muito barulho por nada.

CC: Bolsonaro cumprirá, de fato, pena em regime fechado? Ou há possibilidade de ele apresentar justificativas médicas para obter prisão domiciliar, como aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor?
LS: Esse é um ponto que o STF terá de decidir, uma vez que também é responsável pela execução da pena. No caso de Collor, criou-se uma jurisprudência benevolente: depois daquela decisão, qualquer condenado com mais de 70 anos pode pleitear o mesmo benefício. O Supremo deveria reavaliar isso. Veja o exemplo da Itália: a deputada Carla Zambelli alegou necessidade de cuidados médicos, e o Estado ofereceu tratamento dentro da prisão. O regime fechado não prevê prisão domiciliar. Embora a lei não garanta cela especial após condenação definitiva, defendo que Bolsonaro tenha direito a uma, até por coerência com um parecer que elaborei contra a transferência de Lula para Tremembé em 2019. Um ex-presidente detém segredos de Estado, é preciso protegê-lo. Mas cela especial não é prisão domiciliar.

CC: É a primeira vez que oficiais de alta patente das Forças Armadas e um ex-presidente da República são condenados por tentativa de golpe de Estado no Brasil. O senhor enxerga esse julgamento como uma espécie de acerto de contas com o nosso passado?
LS: Sim, vejo dessa forma. Desde a Proclamação da República, em 1889, o Brasil enfrentou 15 tentativas de golpe de Estado – algumas bem-sucedidas, outras não. Após a condenação de Bolsonaro e seus comparsas, a chance de sofrer mais uma investida diminui bastante.

CC: Enquanto os golpistas eram julgados, bolsonaristas e líderes do Centrão negociavam uma anistia. Caso seja aprovado um novo perdão para quem atenta contra a democracia, que resposta o senhor espera do STF?
LS: Do ponto de vista jurídico, esse é um tema relativamente simples. O problema é político. Anistiar quem tentou um golpe de Estado é inconstitucional, fere a Carta de 1988 e a jurisprudência do Supremo. Nenhuma democracia madura comete haraquiri, perdoando quem tenta derrubá-la. Juridicamente, não há dúvida. O impasse virá se o Congresso aprovar: Lula deve vetar, e o Parlamento pode derrubar o veto. A seguir, o STF será acionado e terá de assumir o ônus de invalidar essa decisão. A responsabilidade por uma eventual crise será dos parlamentares, que, mesmo sabendo da inconstitucionalidade da proposta, insistem em esticar a corda. •

Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Basta’



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