O ano de 2024 figurará para a história como um relevante marco da atuação do Supremo Tribunal Federal na defesa da democracia brasileira e dos poderes constituídos contra ameaças autoritárias e golpistas.
Nosso guardião da Constituição merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel na defesa da democracia. A extrema-direita de matriz bolsonarista vinha, como nunca, fragilizando os espaços e os sentidos dos valores mais essenciais do nosso pacto civilizatório.
De todo modo, ao contrário de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. Atos de violência visaram, para além do mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu o presidente Lula, implementar um golpe de Estado.
Além do relevante papel do Supremo no desnudamento e responsabilização dos atos antidemocráticos, o ano de 2024 é singular para a trajetória da nossa jurisdição constitucional também por outros relevantes julgamentos.
Em abril, o Supremo decidiu que a missão institucional das Forças Armadas não acomoda o exercício de um ‘poder moderador‘ entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No mesmo mês, o Tribunal decidiu que a busca pessoal sem mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos, e não com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.
Em maio, decidiu-se que constitui assédio judicial o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa. No mesmo mês, o Tribunal decidiu que é inconstitucional desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, proibindo-se eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.
Em junho, o Tribunal decidiu que não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta.
Em setembro, decidiu-se que a soberania do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada. No mesmo mês, o Supremo decidiu que é permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade.
Em outubro, o Supremo decidiu que o Ministério da Saúde deve garantir atendimento médico às transexuais e travestis de acordo com suas necessidades biológicas e, ainda, acrescentar termos inclusivos na Declaração de Nascido Vivo. No mesmo mês, o Tribunal decidiu que o dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa, sendo inconstitucional a modalidade culposa prevista na Lei de Improbidade de 1992.
Em novembro, o Supremo decidiu que é constitucional, por não ter violado o devido processo legal legislativo, a revogação, pela Emenda Constitucional n.º 19/1998, da redação original do artigo 39 da Constituição, que previa, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a instituição de regime jurídico único para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.
Referidos precedentes, meramente exemplificativos em face dos quais se somam muitos outros, evidenciam que o Supremo, na condição de guardião da Constituição, vem cumprindo, com louvor, as elevadas e desafiadoras missões institucionais a ele atribuídas. Discordâncias pontuais em face de produtos decisórios específicos não devem, jamais, implicar, para além de singela contribuição ao novo debate, em qualquer fragilização desse que, seguramente, figura como uma das maiores apostas realizadas pela Constituição para a garantia da sua efetividade.