“Na alma ninguém manda. Ela simplesmente fica onde se encanta”
Fernando Pessoa
O Brasil é conhecido por ser potência em vários campos: recursos naturais (12% da água doce do mundo), paisagísticos (maior biodiversidade global), criativos (da invenção do avião à posição de terceiro maior construtor aéreo).
Entretanto, pouco se considera sua riqueza imagética — fruto do encontro, traumático, de três grandes culturas: a indígena, a africana e a europeia. Esta última buscou submeter as outras duas pela força e pela hegemonia cultural, tentando inferiorizá-las.
Essa síntese se espalha por toda a nossa produção cultural: música, cinema, teatro, arquitetura, artes plásticas, moda e até criações híbridas como a capoeira. A religiosidade, entendida por muitos como superestrutura cultural, também não escapa ao sincretismo.
O problema é que raramente reconhecemos essa riqueza, inclusive como ferramenta de promoção da paz, dentro e fora do País.
Exemplo: em Porto Alegre, o Santuário de Nossa Senhora do Rosário recebe devotos de religiões de matriz africana durante as missas, que ali veneram tanto a Senhora do Rosário quanto Nossa Senhora Aparecida. Vão com trajes litúrgicos, entram livremente — algo impensável na Itália, onde a entrada em templos é proibida durante celebrações.
Mais: a capital gaúcha chegou a ter uma lei que incentivava o diálogo inter-religioso. Foi rapidamente extinta pela direita, sem benefício para ninguém.
O aeroporto Salgado Filho, antes de ser privatizado por Fernando Henrique Cardoso, abrigava talvez a mais bela capela de aeródromo do mundo: nos nichos iluminados estavam a Bíblia, o Corão, a Torá, objetos sagrados das religiões africanas, do hinduísmo, do taoísmo, entre outros. Tudo destruído pela empresa alemã que assumiu a concessão.
Apesar disso, a população segue valorizando nosso imenso capital simbólico. Minha avó, por exemplo, costumava se reunir com vizinhas pela manhã para contar e interpretar sonhos: voar era ser borboleta. Logo em seguida, faziam sua fézinha no jogo.
Na arquitetura, o mesmo se observa: escravizados com conhecimento em fundição criavam grades com símbolos religiosos africanos na arte das ferragens.
Temos, portanto, uma capacidade única de compreender outras culturas. Por que não a usamos para promover a paz, dentro e fora do Brasil?
Porto Alegre e São Paulo abrigam importantes comunidades palestinas e judaicas. Por que esses municípios não promovem encontros entre elas, capazes de reverberar até no Oriente Médio? Internamente, por que a CNBB não mantém reuniões periódicas com pais e mães-de-santo, xeques, rabinos, pastores?
Vale lembrar: linguagens são conjuntos de símbolos. Ser rico em simbologia significa ter acesso a um nível superior de linguagem — e, por extensão, a maiores possibilidades de compreensão mútua.
Na revista Cult deste mês, Antonio Trevisan reflete:
“Podemos afirmar que o vínculo humano é tecido entre a necessidade de pertencimento e o impulso de exercer poder, entre a abertura ao outro e a defesa contra a ameaça que ele representa.”
De fato, somos regidos pelo coração, que pulsa em sístoles e diástoles — contrações e expansões. Abrimo-nos e nos fechamos. Yin e yang, diriam os orientais.
Com tamanha riqueza simbólica, teríamos o direito à imobilidade, ao fechamento? Ou nossa vocação seria abrir-nos ao diálogo, mais preparados que qualquer outro país? Podemos fugir dessa responsabilidade? Afinal, como lembra o Cristo: “A quem muito foi dado, muito será pedido.”
E como dizia Vinícius de Moraes:
“Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém.”
Não nos deixemos culpabilizar pela opressão — venha dos colonizadores ou de manipulações religiosas. Olhemos com olhos de primavera: novos, abertos.
Os centros das cidades estão morrendo? Que entrem as universidades!
Por que seguimos modelos segregadores, herança de fascismos de ontem e de hoje, que isolaram estudantes em guetos travestidos de “cidades universitárias”?
A quem interessa essa segregação?
Por que diplomatas e militares estudam em institutos apartados dos demais?
Nossos corações não fariam diástoles que implicassem separações: se sístoles são contrações, é também nelas que se dá a reunião.
Território, lembremos, não é questão menor. Está no cerne da agressão genocida de Israel à Palestina.
Encantemo-nos com nossa herança. E coloquemo-la a serviço do Brasil — e do mundo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.