Armas dos EUA, Alemanha e Bélgica abastecem crime organizado no Brasil – CartaCapital

O Brasil é atualmente o país da América Latina com a maior parcela da população vivendo em territórios comandados pelo crime organizado e, para exercer seu poder, essas organizações têm recorrido cada vez mais às armas de fogo de estilo militar, como fuzis, submetralhadoras e metralhadoras.

Um levantamento inédito do Instituto Sou da Paz com dados da região Sudeste – berço de organizações como o PCC e o Comando Vermelho, as maiores facções nacionais –, mostra que há um crescimento na apreensão desse tipo de armas no país. E mais, que parte desses armamentos usada pelos criminosos tem como origem países como Estados Unidos, Alemanha e Bélgica.

A pesquisa Tiro no escuro: A ascensão de armas de fogo de estilo militar no crime em meio a falhas regulatórias e deficiência de dados no Brasil, publicada na revista acadêmica de Economias Ilícitas e Desenvolvimento, da London School of Economics (LSE), é a primeira mais aprofundada sobre origem, perfil e presença das armas de fogo de estilo militar, conhecidas como Afem, no Brasil.

O levantamento foi feito a partir da coleta e exame de aproximadamente 7 mil armas apreendidas por forças estaduais e federais em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo entre 2019 e 2023. No Brasil, as armas de fogo são responsáveis por 71% das mortes violentas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

As armas de fogo de estilo militar têm um papel central nessas estatísticas. “Estas são armas que, apesar de não serem a maioria das apreensões em nenhum estado, respondendo por 3% nacionalmente, causam um dano à segurança pública muito grande. Quando você insere um fuzil, uma submetralhadora, essa criminalidade ganha outro nível”, explica Natália Pollachi, diretora de projetos Instituto Sou da Paz.

“O armamento pesado é essencial para o crime organizado exercer domínio territorial em áreas estratégicas e cometer crimes de alta complexidade, um fenômeno que avança em partes de São Paulo, similar ao Rio de Janeiro”, afirma Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz.

“Elas permitem ações de maior complexidade tática. Por exemplo, ataques a bancos, fuzis que furam blindagem, ataques a transporte de valor, a carros de autoridades, resgate de sistema penitenciário, são todas ações possibilitadas por esses armamentos”, complementa Pollachi.

Hoje, o estado campeão de apreensões das armas de fogo de estilo militar é o Rio de Janeiro, seguido por Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo. Dentro do período estudado, o estado capixaba foi o com maior salto nas apreensões deste tipo de arma, com crescimento de 467%, enquanto o estado do Rio de Janeiro presenciou um aumento de 32%.

“No Rio, chega a 10% o volume de fuzis e submetralhadoras entre [o total de] armas apreendidas é absolutamente alarmante”, exemplifica Pollachi.

Origens diversas e armas artesanais

Durante o período analisado pelos pesquisadores, as apreensões por ano de armas de fogo de estilo militar no Brasil cresceram 33,7% em quantidade, passando de 1.929 para 2.581, e sua proporção entre todas as armas de fogo apreendidas aumentou de 1,7% para 2,4%.

Na região Sudeste, a quantidade de armas de fogo de estilo militar apreendidas aumentou em 11,4% (de 1.494 em 2019 para 1.665 em 2023), e sua proporção entre o total de armas apreendidas aumentou de 3% para 4,3%.

O levantamento também se debruçou sobre as origens dos armamentos pesados. “O arsenal das facções provém de múltiplas origens, adaptando-se à conveniência e ao risco envolvido. Para metralhadoras, dessas de guerra, de maior calibre, a principal fonte é desvio de Forças Armadas, já que não é possível comprá-las legalmente”, explica Langeani.

Um exemplo de caso recente desse desvio foi o furto e comercialização de armamentos de grosso calibre do Arsenal de Guerra de Barueri (SP), ocorrido no dia 7 de setembro de 2023, quando a unidade militar estava sem expediente. Na época, o Exército registrou a ausência de 21 metralhadoras, sendo 13 de calibre .50 e oito de calibre 7,62.

De acordo com Langeani, a maior fonte de submetralhadoras é artesanal, produzidas por pequenas fábricas que fazem a arma do zero. Um fenômeno preocupante, segundo o pesquisador, é o aumento de armas sem identificação e a produção clandestina de fuzis. “É um problema que a gente já sabia que ia encontrar, mas não imaginou a dimensão”, diz.

“O fuzil, ele é essencial principalmente em zonas onde há conflagração pelo controle dos territórios, onde há disputa”, explica Roberto Uchôa, pesquisador da Universidade de Coimbra e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para Langeani e Uchôa, a flexibilização da legislação para Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) durante o governo de Jair Bolsonaro (2019 – 2022) também criou um novo canal de desvio de fuzis para o crime organizado.

Segundo Langeani, houve muitos casos documentados de pessoas que compraram, ficaram uma semana com o fuzil e já repassaram. “Por que eu vou no Paraguai pagar em dólar um fuzil, ter que cruzar a fronteira, correr o risco de eu pegar uma pena de tráfico internacional que é muito mais alta, se eu tenho um esquema doméstico que é muito mais fácil de eu conseguir?”, questiona Langeani.

Em 2023, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva reverteu essas mudanças, restabelecendo quase todos os limites sobre o número e os tipos de armas de disponíveis para civis. Para Uchôa, entretanto, o problema persiste, já que 6 mil das cerca de 50 mil armas de calibre restrito que eram para ser recadastradas não o foram. “Hoje a gente não sabe se estão com os proprietários.”

Crime organizado também é abastecido por armas de outros países

Embora marcas do Brasil sejam a maioria nas apreensões, há em circulação modelos dos EUA e países europeus. Para Rafael Alcadipani, pesquisador da FGV, os armamentos pesados estão com acesso muito fácil no Brasil. “Temos, de fato, fronteiras muito porosas, onde esse armamento entra com muita facilidade. Enquanto que as Forças Armadas nem têm sido equipadas ao ponto de conseguirem cuidar dessas fronteiras”, explica.

A fronteira do Paraguai ainda é uma origem importante, pontua Pollachi, mas países como os EUA vendem sem regulamentação partes e componentes para a montagem de fuzis.

Quando analisados os três calibres mais frequentes de fuzis apreendidos no Sudeste, os fabricantes de calibre 5.56x45mm mais frequentes entre os equipamentos apreendidos são Colt, dos EUA, Imbel e Taurus, marcas brasileiras.

Entre os fuzis de calibre 7.62x51mm, houve prevalência dos modelos FAL, inicialmente projetados na Bélgica pela fabricante FN Herstal, mas licenciados para produção no Brasil e na Argentina. Os fabricantes mais prevalentes neste calibre foram Imbel (23,3%), FN Herstal (8,5%) e Colt (5,5%).

Já em relação ao calibre 7.62x39mm, as empresas mais frequentes foram a sérvia Zastava, a romena Romarm e a chinesa Norinco. Em quarto lugar, a empresa americana Century Arms. Além de fabricar seus próprios modelos, a Century Arms importa e revende fuzis romenos. Esses modelos são frequentemente encontrados em mãos de criminosos no Brasil e no México.

Entre as submetralhadoras, as marcas mais mencionadas contemplam as brasileiras Indústria Nacional de Armas (INA), que encerrou suas atividades em 1972, e a Taurus, que fabrica este tipo de arma desde 2011. Há também a Beretta, da Itália, a alemã Heckler & Koch, e a israelense IMI.

As metralhadoras apreendidas, que respondem pela maioria das armas analisadas no estudo, têm como fabricantes predominantes a americana Browning e a belga FN Herstal, mas também foram encontrados modelos da dinamarquesa Madsen e da francesa Hotchkiss.

A Alemanha é um país cujas armas têm muito prestígio mundialmente, com as forças de segurança, mas também com o crime, afirma Langeani. A Alemanha se destaca bastante dentre o comércio de submetralhadoras, especialmente a HK, e está ligada diretamente a crimes recentes de repercussão nacional, como a morte da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018.

Faltam dados para traçar cenário nacional

Há uma falta de transparência histórica na segurança pública brasileira, dizem os pesquisadores. Informações antes públicas, como dados de apreensão de armas de fogo, incluindo números de série, que costumavam ser divulgados pela Polícia Federal e pelo governo do Rio de Janeiro, desde 2024 são de acesso restrito.

Há problemas também na coleta e organização de dados. Os estados do Sudeste, por exemplo, não conseguiram prover aos pesquisadores informações sobre armas de fabricação privada (PMF, na sigla em inglês). Para chegar aos números revelados no estudo, os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), além de bases de apreensões do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e da Polícia Federal.

Também foram coletadas informações de 40 casos judiciais para obter indicativos sobre origem, rotas de tráfico e operacionais de armas de fogo de estilo militar apreendidas.

Há ainda um terceiro empecilho: policiais responsáveis pelo registro inicial das armas apreendidas e peritos forenses têm capacidade limitada para identificar as armas. Para os pesquisadores, isso dificulta a análise e a identificação de novas dinâmicas, como o surgimento de ghost rifles – montados a partir de peças de vários fabricantes – e fuzis falsificados, e frequentemente resulta em dados equivocados.

“Há muito erro… É muito comum eles registrarem submetralhadora como metralhadora, fuzil como carabina, trocar calibre, escrever uma marca errada. O pior registro é em São Paulo; só Taurus [o nome da marca] temos escrito com mais de 100 redações diferentes”, exemplifica Langeani.

Estado enfrenta desafios para responder ao problema

Os governos federal e estaduais não têm o combate ao tráfico de armas como uma prioridade, mas deveriam ter, na visão de Uchôa. “Um quilo de cocaína não vai subjugar uma comunidade inteira. Agora, cinco fuzis vão.”

Para fazer isso, de acordo com o pesquisador, seria preciso incentivar os governos estaduais a criar delegacias especializadas em combate ao tráfico de armas e criar bancos nacionais de dados de armas apreendidas. Segundo Alcadipani , isso precisa ser feito porque o crime organizado tem intensificado suas ações, buscando um caráter mais “espetacular”, demonstrando alta organização.

Um exemplo pode ter sido o assassinato do ex-delegado Ruy Ferraz Fontes no litoral paulista em 16 de setembro. Fontes era um dos pioneiros na investigação de ações do PCC. Segundo Langeani, o perfil da arma utilizada no crime é similar ao dos fuzis liberados para aquisição de civis durante o governo Bolsonaro. Fontes foi morto com fuzis calibre 556 e 762, justamente os que aparecem com maior frequência na pesquisa do Sou da Paz.

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