
“Nós somos da altura do que vemos.”
— Fernando Pessoa
Em grande parte, somos regidos pelo inconsciente. Entretanto, pouco nos damos conta disso no cotidiano. Buscamos riquezas mas, paradoxalmente, deixamos essa enorme riqueza interna encoberta, quase intacta — uma fonte inesgotável de conhecimento, prazer e novas linguagens.
São muitas as fábulas, inclusive infantis, que aludem alegoricamente a esse tesouro oculto: da caverna encantada de Ali Babá ao gênio aprisionado na lâmpada mágica, capaz de realizar todos os desejos. Ainda assim, colocamos a realização desses desejos fora de nós. Não parece acaso que o Ocidente tenha situado tais narrativas no Oriente.
A ameaça de invasão da Venezuela por Donald Trump — que segue os passos do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, recorrendo a uma guerra externa para desviar a atenção de um escândalo — não estaria dissociada dessa busca incessante de riquezas fora da própria capacidade de trabalho e de “mirar da altura do que somos”.
Se olharmos retrospectivamente, não foi assim que os Estados Unidos se fizeram grandes? Não foram as ingerências na América Latina e Caribe, na África e no Oriente Médio que lhes permitiram acumular riquezas no pós-guerra? Não foi assim no Brasil, em 1964, e, antes, no Irã (1953) e no Congo (1961)?
Dessa forma, como o slogan trumpista “Faça a América Grande Novamente” poderia não implicar novas guerras e invasões, se foram justamente elas que deram sustentação à “América Grande”?
Em contraposição a essa violência predadora, os povos originários das Américas ergueram culturas de paz, como ilustra 1492, Anacaona, a insurgente do Caribe (Editora Jandaíra), de Paula Anacaona:
“Na noite de Natal, os marinheiros decidem fazer uma pausa: tudo está calmo, o mar está liso como um espelho… Lentamente, uma das caravelas [dos espanhóis] se choca contra os recifes que margeiam a ilha. (…) Guakanagarik envia todo o seu povo para ajudar os marinheiros espanhóis a transferir a carga para suas canoas antes que tudo se perca. (…) Colombo se surpreende com a empatia do cacique, a quem descreve ‘em lágrimas’ (…) Isso o fez escrever em seu diário: ‘Eles amam o próximo como a eles mesmos’. Os espanhóis conseguem salvar a madeira do navio e a usarão para construir um forte, o Forte da Navidad.”
Sobre os taínos, uma das principais etnias do Caribe, a autora esclarece:
“Os taínos frequentemente têm sido comparados ao ser humano num estado de pureza ‘original’. Pensar assim significaria desconsiderar a avançada organização política da ilha, as inúmeras horas investidas no cruzamento de espécies, no cultivo, na construção de diques e canais, na observação do céu para prever fenômenos meteorológicos. (…) Ao longo dos séculos, os taínos adaptaram suas terras em perfeita harmonia.”
Mas, ao olhar para o presente caribenho, percebemos o desastre promovido pelos colonizadores. O Haiti, com 80% do território sob domínio de gangues armadas, é o símbolo mais evidente.
Ao extermínio quase total dos povos originários seguiu-se a colonização forçada da região por africanos escravizados. Assim, não se pode entender o Caribe de hoje sem remeter à África, origem da maioria de sua população contemporânea. Infelizmente, nossa política externa ainda vacila em reconhecer essa relação necessária e indissolúvel.
Em Por uma Revolução Africana (Editora Zahar), Frantz Fanon aprofunda os conceitos de exploração e racismo:
“O racismo salta aos olhos precisamente por fazer parte de um todo bastante típico: o da exploração desavergonhada de um grupo de homens por outro grupo que atingiu um estágio de desenvolvimento técnico superior. (…) O hábito de considerar o racismo como uma disposição de espírito, uma tara psicológica, deve ser abandonado.”
E explicita sua funcionalidade:
“O colonialismo organiza a dominação de uma nação após a conquista militar.”
Em chave positiva, cultural e étnica, Fanon acrescenta:
“Como diria o célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão.”
Para nós, brasileiras e brasileiros, também o são a música, a culinária, a capoeira, o sincretismo religioso e tantas outras expressões culturais.
Em Seja Homem (Editora Dublinense), JJ Bola menciona uma entrevista de Laverne Cox à Time, sobre nossas inseguranças diante do outro:
“As pessoas não querem interrogar criticamente o mundo à sua volta. Quando tenho medo de alguma coisa ou me sinto ameaçada, é porque essa coisa desperta algum tipo de insegurança em mim.”
Bola conclui:
“O que permanece no horizonte é a necessidade de compreendermos as experiências vividas por cada um, aprendendo com as realidades de pessoas iguais e diferentes de nós. Essa troca nos permite crescer e desenvolver um entendimento mais genuíno dos indivíduos, para que possamos lutar por um mundo onde as pessoas não sejam marginalizadas por serem elas mesmas.”
Bem-vinda a igualdade — e a diversidade.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
