
Na década de 1980, o transporte coletivo no Brasil apresentava elementos de crise continuada: aumentos frequentes de tarifa, revoltas populares, perda da capacidade de investimento por parte das empresas de ônibus, incapacidade de atendimento das demandas nos bairros de periferia. A inflação acelerada, característica marcante desse período, pressionava os custos, e os reajustes eram recebidos com grande descontentamento popular e pressão política em um contexto de abertura política. Já não era tão “fácil” conter a indignação das massas com a espoliação urbana — prova disso foi o quebra-quebra dos ônibus de Salvador em 1981, que mudou a direção do debate sobre o financiamento do sistema.
Depois de anos de debate, em 1985 foi aprovada a Lei 7.418/1985, que instituía o vale-transporte em nível nacional. Inspirado na lógica do vale-alimentação, o benefício se dava de maneira facultativa – tanto para empregados quanto para patrões – e, inicialmente, foi pouco adotado nas grandes cidades brasileiras. Foi necessária uma alteração na legislação em 1987, com a Lei 7.619/1987 – tornando o oferecimento do benefício obrigatório (e a concordância ou não por parte do empregado, facultativa) – para que a adoção do vale-transporte se tornasse praticamente universal nas grandes cidades brasileiras.
A lógica da lei estava totalmente atrelada ao universo do trabalho formal e à forma como o transporte por ônibus se consolidou nas cidades brasileiras: pensado exclusivamente para permitir que a classe trabalhadora pudesse ir e voltar do trabalho, o vale-transporte se estruturava na aquisição mensal do valor das passagens para o trabalhador. Mas a composição do “benefício” era uma repartição entre empregador e empregado – o trabalhador tem até 6% do seu salário descontado e o patrão complementa com o restante, isento de impostos, para compor o custo total das passagens necessárias naquele mês. Além disso, e de maneira fundamental, por lobby das empresas de ônibus, os valores do vale-transporte não possuem nenhum mediador no poder público e são repassados diretamente das empresas empregadoras para as empresas de ônibus.
Na prática, e isso é amplamente documentado e constatado, o vale-transporte salvou as empresas de ônibus do colapso, deu liquidez e reestruturou financeiramente o setor, possibilitando que o segmento continuasse auferindo lucros e se expandindo economicamente mesmo no cenário de hiperinflação e recessão econômica do período, que só foi sanado com o Plano Real em 1994.
Como consequência “secundária”, também manteve o transporte coletivo factível e capaz de atender às demandas básicas da população das grandes cidades, que possuíam subsídio para poder se deslocar e vender sua força de trabalho, desde que contratados formalmente, via CLT.
Em um cenário paradoxal, uma vez que havia subsídio para uma parte dos usuários, a tarifa média cobrada ao usuário teve seu maior período de crescimento na década de 1990. De uma maneira corporativista, desigual, incompleta e praticamente sem participação popular – a não ser de maneira indireta, em virtude da pressão social das revoltas – o vale-transporte foi a única, última e maior reestruturação da forma de financiamento do setor de transporte urbano no Brasil, responsável, à época, por toda urbanização e pelo deslocamento da imensa maioria dos trabalhadores do Brasil. E esse momento ocorreu há quatro décadas.
Crise estrutural e desafios do transporte público hoje
Corta para 2025. O transporte coletivo, especialmente o realizado por ônibus, enfrenta uma incapacidade crônica de financiamento e sustentabilidade. O pico de demanda e operação registrado se situa em 1995, há longínquos 30 anos. A perda de demanda decorrente do círculo vicioso da tarifa foi um torniquete pressionando o sistema ano a ano e que atingiu sua fase de colapso e “sobrevivência por aparelhos” a partir da pandemia de Covid-19.
Salta aos olhos o lugar secundário para onde o transporte público rumou enquanto as cidades se inundam de carros e motos e todas as externalidades negativas desse contexto: perda de saúde mental no trânsito, engarrafamentos, acidentes, poluição, crise urbana crônica.
Mesmo em menor proporção, ainda há, como na década de 1980, um contingente significativo de pessoas que não acessa serviços e direitos em suas cidades por não poder pagar a passagem do transporte público. A Pesquisa Orçamento Familiar do IBGE de 2018 mostra, por exemplo, que as famílias mais pobres de Belo Horizonte gastam, em média, cerca de 20% de sua renda com ônibus, mesmo realizando menos de cinco viagens mensais no sistema.
Da mesma maneira que naquele momento, a violência como forma de seleção de quais corpos podem ou não acessar os espaços ainda impera, na forma de catracas e fiscais de ônibus, que agem como leões de chácara. Como na década de 1980, há uma crise estrutural de financiamento e reprodução dos sistemas de transporte coletivo em todo o País, cuja consequência se expressa em graves problemas urbanos, e os atuais instrumentos à disposição são incapazes de apresentar uma saída.
Mas as semelhanças entre os dois momentos históricos param por aí. Hoje, o transporte coletivo por ônibus não abarca mais de 60% dos deslocamentos como há 40 anos. A pressão demográfica e urbana que caracterizou a urbanização brasileira do século XX arrefeceu e mudou de natureza, os sistemas não precisam mais se expandir em bases precárias, e sim se adaptar e disputar passageiros.
A cruelmente chamada “demanda cativa” do transporte coletivo vem diminuindo ano a ano, dando espaço principalmente para motos e soluções individuais mais precárias. Os empresários do setor, na década de 1980, avançavam em sua organização de classe em níveis estaduais e regionais. Hoje, vivem uma crise geracional e de representação, mas retêm muito do poder econômico e político que amealharam nas últimas décadas.
Na década de 1980 havia o que se convencionou chamar de “Movimentos Reivindicativos de Transporte Coletivo”, que surgiam com demandas locais principalmente para a criação de linhas em bairros periféricos, mas é fato que esses movimentos não se equipararam a seus contemporâneos no campo da moradia e da saúde pública, para citar alguns, e não conseguiram formular e pautar nacionalmente uma proposta para o transporte coletivo na Constituinte de 1988, como os movimentos pela reforma urbana e pelo SUS fizeram.
Hoje, ainda que com limitações, podemos contar com o acúmulo de anos de um conjunto de movimentos sociais, ativistas, ONGs e também parlamentares que, ao longo do tempo, pesquisam, constroem, atuam e lutam por uma solução para a mobilidade urbana que seja de interesse da coletividade e que efetive o transporte como um direito social. E essa solução tem como pilar central inescapável a tarifa zero.
A luta pela abolição da tarifa como elemento mediador do transporte público carrega em si um conjunto múltiplo e denso de significados.
A tarifa nasce com o transporte coletivo no século XIX e expressa suas exclusões e sua limitação. Rateio do custo do sistema entre os passageiros pagantes é mecanismo do que chamamos de “círculo vicioso da tarifa”, em que aumentos tarifários geram perda de usuários, por um lado, e aumento do número de veículos nas ruas que, por sua vez, pressiona os custos do transporte ao piorar suas condições de deslocamento. Com menos passageiros para ratear um custo que cresceu, a tarifa é pressionada a mais uma vez subir, reiniciando as causas de seu aumento inicial.
A tarifa e suas exceções condicionadas à regra – os diversos grupos com direito à gratuidade – geram mecanismos de burocracia que aumentam o custo do sistema. Além disso, boa parte das gratuidades acarreta em si a necessidade de mecanismos de controle sobre as circunstâncias do deslocamento — horários, linhas, motivos — além de segmentar a população entre aqueles que podem ter direitos ou não.
A abolição da tarifa significa não só a instituição da universalidade do acesso como princípio básico de mediação do espaço urbano, mas o fim de mecanismos excludentes, perversos e ineficientes — do ponto de vista econômico, social e moral.
Garantir o acesso à cidade como ponto de partida de qualquer política urbana e trazer, por meio de políticas públicas, o transporte coletivo como prioridade real do planejamento significa encerrar os anacronismos que nos prendem a cidades que não são mais manifestação das nossas formas sociais e inaugurar a política de mobilidade necessária ao século XXI.
A luta pela tarifa zero e a construção do Sistema Único de Mobilidade
Abrangendo uma população de mais de oito milhões de habitantes, 138 municípios brasileiros foram pioneiros e prefiguram – com todas as dificuldades inerentes a esse processo – a política que queremos para este século.
Porém, todos esses municípios têm menos de 400 mil habitantes cada, utilizam para seu custeio apenas fontes orçamentárias ordinárias e não podem alcançar a escala de custo e gestão necessárias para as metrópoles brasileiras adotarem a política.
Em outubro deste ano, após oito meses de uma intensa e participativa campanha, Belo Horizonte chegou a votar no plenário de sua Câmara Municipal uma proposta de tarifa zero universal a partir da substituição do vale-transporte – que, vinculado por lei federal ao preço público do transporte, se tornaria letra morta – por uma taxa cobrada de empregadores em estabelecimentos com mais de nove empregados. Corajosa, a proposta colocou a sociedade civil na iniciativa política e na ofensiva — ao invés de resistência à retirada de direitos — pela primeira vez em muitos anos. Entretanto, diante de uma prefeitura arcaica e covarde e de entidades patronais poderosas, como a FIEMG e a CDL, os vereadores da base escolheram ignorar a população e negar a Belo Horizonte o papel de vanguarda que teria no inevitável efeito dominó que a adoção política em uma capital geraria.
Apesar da derrota parlamentar, a campanha moveu placas tectônicas e colocou o debate na ordem do dia do governo federal. O presidente Lula solicitou ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, um estudo sobre a viabilidade do financiamento da tarifa zero a nível nacional.
Diante de tamanha tarefa, desafios são colocados: diagnosticar o setor, reformular o papel da iniciativa privada, trazer para o centro do debate a participação popular e equacionar o inexistente arranjo federativo para a questão do transporte coletivo, definindo regras de remuneração, formatos de concessão e gestão, critérios para repasse de recursos entre entes federativos e, principalmente, as fontes de receita, que têm em seu cerne a reformulação do moribundo vale-transporte.
Tudo isso desemboca na construção de um Sistema Único de Mobilidade que, aos moldes de seus já nascidos e crescidos irmãos SUS e SUAS, estabeleceria um arranjo de responsabilidades compartilhadas e proporcionais, em que governo, usuários e trabalhadores possam deliberar as diretrizes das políticas públicas tendo como base o princípio inegociável da universalidade do acesso.
A Proposta de Emenda à Constituição que pode estabelecer o SUM partiu da deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP), decana do Congresso Nacional e da pauta da tarifa zero, e atualmente aguarda ser pautada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Fazer o SUM avançar a partir dessa PEC é reconhecer em vida o legado e a potência desta assistente social paraibana cuja vida e cuja trajetória se confundem com a história dos movimentos sociais brasileiros. É também, fundamentalmente, retomar a proposta de democracia e cidadania que a Constituição de 1988 define, e cujo caminho deve ser defendido, ampliado e atualizado para o século XXI.

 
                    