
Não existem coincidências na política. Ou, se existem, elas se prestam muito mais a precipitar estratégias anteriormente traçadas do que como pretexto verdadeiro para a formulação de um posicionamento político.
Explico tendo como pano de fundo a carnificina promovida pelo governo Cláudio Castro na megaoperação policial que resultou na morte de 121 pessoas nos Complexos da Penha e do Alemão, sendo quatro policiais. As cenas macabras de corpos expostos à luz do dia não provocaram um mínimo de pudor nas autoridades envolvidas, muito ao contrário.
Mesmo sem ter levado à prisão de algum chefe da facção criminosa ou apreendido quantidades relevantes de dinheiro, armas ou drogas, a operação foi classificada pelo governo do Rio de Janeiro como um sucesso. De quebra, reanimou o mais desprezível oportunismo político em Castro, até então um zumbi na equação eleitoral fluminense, e outros governadores da extrema-direita.
A discrepância no número de vítimas e a forma como dezenas de corpos foram encontrados, com sinais de fuzilamento, são claros demonstrativos de que foi planejada e autorizada uma ação com objetivo de matar em escala e produzir impacto político, a partir da espetacularização da morte como abordagem de segurança pública.
Como disse, não foi coincidência, mas ação planejada para que o bolsonarismo recuperasse espaço na agenda política. Afinal, há meses que o governo Lula acertou a mão na política e no discurso, tendo recuperado popularidade e projetado melhores cenários para a reeleição em 2026.
A sequência de acontecimentos dos últimos meses foi implacável com a oposição: o tarifaço de Trump e a ação lesa-pátria da família Bolsonaro e de Tarcísio deram a Lula a bandeira da soberania, trunfo que o presidente soube aproveitar; o STF condenou Bolsonaro, que terá a prisão decretada em breve; manifestações progressistas fizeram o Senado enterrar a PEC da Blindagem, que havia sido aprovada na Câmara, e forçaram a aprovação da isenção de Imposto de Renda até 5 mil reais; Lula se reuniu com Trump e recolocou a diplomacia no trato entre os países.
Os dados econômicos do País são bastante positivos: desemprego em 5,6%, menor taxa da série histórica; a inflação em queda consistente, a começar pelos alimentos; dólar em queda e a Bolsa batendo recordes atrás de recordes. Além disso, a COP30 coloca o Brasil e Lula nos holofotes da mídia nacional e internacional.
Acuado, o bolsonarismo agiu para trazer o jogo para o seu campo predileto: a segurança pública, ou mais precisamente, a guerra às drogas e o extermínio físico como política de segurança. Nessa abordagem cínica, a violência letal da polícia é incentivada por políticos que, na verdade, se beneficiam eleitoralmente dos territórios controlados por milicianos e traficantes.
A chacina dos “bagrinhos” do crime é transmitida para a população como “preço a ser pago” para contê-lo, mas, para os peixes graúdos, o dinheiro sujo continua sendo lavado através de fintechs, bets, negócios de fachada, e segue fluindo e lubrificando as engrenagens da corrupção.
O fato veio acompanhado de grande e articulada mobilização do bolsonarismo nas redes sociais, algo que há meses não se via nessa dimensão. Não há postagem que trate a operação de maneira crítica ou valorize ações da Polícia Federal que não seja alvo de “comentaços” de haters e bots da extrema-direita. É a forma de manter a tropa coesa e disputar a opinião pública.
Mas não ficou por aí. A megaoperação faz parte de um plano perigoso do bolsonarismo de classificar facções criminosas como grupos terroristas, o que abriria precedentes para sanções internacionais e até mesmo incursões militares de outras nações contra o Brasil. Lembremos que, dias antes da chacina, Flávio Bolsonaro publicou uma postagem nas redes aludindo a um ataque militar dos EUA na baía de Guanabara, como tem ocorrido na Venezuela e na Colômbia. Não é coincidência!
Os mortos sequer haviam sido identificados, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, sob maioria da direita, anunciou que pautaria o projeto que equipara facções a terroristas e, de forma coordenada, os bolsonaristas passaram a utilizar a expressão “narcoterrorismo”.
Ora, as facções brasileiras são organizações criminosas terríveis, mas suas motivações são puramente econômicas e não políticas e ideológicas, como ocorre na definição básica de terrorismo, nem por “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, como classifica a já problemática Lei 13.260/2016.
Não apenas o governo entrou em campo para conter esse disparate, mas lideranças políticas de diversos campos e até mesmo segmentos econômicos que poderiam ser afetados por eventuais sanções ou desistência de investimentos. Afinal, imaginem que, da noite para o dia, o Brasil passaria a integrar o rol de nações sujeitas a um tipo de risco que não faz parte do nosso cotidiano. Algo fora de propósito, mas que atenderia aos interesses de quem bate continência para a bandeira do Tio Sam.
O último movimento tem a ver com o Projeto de Lei Antifacção, enviado pelo governo Lula para agravar penas de crimes dessas organizações criminosas do tipo PCC, CV e seus tentáculos em outros estados. A relatoria da proposta foi dada ao deputado Guilherme Derrite, que se licenciou da Secretaria de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas para assumir o posto, uma provocação dos setores oposicionistas.
A politização irresponsável do tema demonstra que é essa a aposta do bolsonarismo para 2026. A hipótese de votação acelerada, no plenário, de um texto maculado pela extrema-direita e que pode atingir competências da Polícia Federal e fragilizar o combate ao crime organizado seria um grave erro político da Câmara, que se veria às voltas como um novo desgaste semelhante ao da PEC da Blindagem.
O governo Lula e o campo progressista devem articular um discurso coeso e coerente sobre a segurança pública, que não pode romantizar o banditismo e naturalizar que 28 milhões de brasileiros vivem em territórios controlados por criminosos violentos. É preciso tomar medidas concretas para recuperar o controle e levar o Estado para essas comunidades. Lugar de criminoso é na cadeia!
Ao mesmo tempo, não podem ser intimidados pela necropolítica da extrema-direita. Não há pena de morte no Brasil e é inaceitável que as forças estatais adentrem comunidades com o intuito deliberado de exterminar pessoas, ainda que sejam criminosos. Esse enredo trágico promete ter novos capítulos, já que o governador do Rio anunciou que fará outras 10 operações.
É preciso mostrar os resultados efetivos da ação da Polícia Federal, que, agindo de forma coordenada com as polícias estaduais, tem batido na parte mais sensível do crime organizado: o dinheiro. Além de apreensões de valores, bens e prisões de líderes, tem desarticulado esquemas bilionários de lavagem e escancarado as ligações do crime com setores que atuam no mercado financeiro e tiveram suas operações fraudulentas facilitadas pelo governo Bolsonaro.
A aprovação da PEC da Segurança é a medida mais importante e estruturante para fortalecer e dotar de inteligência, integração, cooperação e recursos não contingenciáveis o Sistema Único de Segurança Pública. A solução possível virá por aí e não da utilização da morte como bandeira eleitoral, como faz o bolsonarismo.
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