É simbólico, potente e representativo poder dar as mãos, beijar e existir enquanto pessoa LGBTQIA+ em espaços públicos, no coletivo que chamamos de cidade. Esta cena foi muito presente no último feriado na cidade de São Paulo, marcado por uma série de eventos ligados à pauta LGBTQIA+, em especial a 29ª Parada, nomeada de “Envelhecer, LGBTQIA+: memória, resistência e futuro”, ocorrida no domingo 22 de junho.
O quase comum e o ordinário dessas cenas podem ser alguns dos resultados de anos de luta e resistência para que fosse possível “sermos nós” em público. Como muitas resistências que se relacionam à apropriação do espaço, podemos aproximá-la, por exemplo, das várias interpretações sobre o Direito à Cidade, conceito de Henri Lefebvre frequentemente acionado no campo dos estudos urbanos e das lutas em torno da reapropriação da cidade por seus habitantes, principalmente aqueles marginalizados.
A Rua da Consolação e a Avenida Paulista, por exemplo, são alguns dos palcos dessa parada. A mesma avenida foi também cenário de um violento e conhecido crime de homofobia em novembro de 2010, no qual três jovens foram covardemente agredidos e golpeados com bastões de lâmpadas por um grupo de cinco rapazes. O antagonismo dessas cenas demonstra a cidade enquanto um espaço em conflito e disputa, e nos informa que o “quase comum” que a parada representa ainda não é absoluto, talvez nem quase ordinário seja. A mesma cidade que recebe milhares de turistas no feriado de Corpus Christi para comemorar o orgulho de ser LGBTQIA+ é integrante do estado que mais mata pessoas trans no mundo, como apontou o dossiê de 2024 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
São Paulo é conhecida como uma cidade em que a cena “gay” é muito presente — são muitos os bares que exibem orgulhosamente bandeiras LGBTQIA+, cada vez mais coloridas e com diversas formas, em um movimento importante de incluir a infinitude de representações deste grupo. Festas dedicadas ao público e espaços emblemáticos pela cidade tornam-se símbolos de orgulho e visibilidade. Entretanto, grande parte desses lugares está vinculada a possibilidades de consumo, refletindo uma realidade em que o reconhecimento social dessa comunidade está, em parte, condicionado ao poder aquisitivo, privilégio acessível apenas a uma parcela da população LGBTQIA+. As condições e as estruturas sociais atuais condicionam, por exemplo, um contexto no qual o público masculino gay, principalmente branco, alcance uma renda que não pode ser ignorada pelo mercado. Não é à toa que esta cena “gay” de São Paulo é lotada por personagens masculinos gays e brancos.
É uma forma legítima de resistência – e não pode ser ignorada. Contudo, se hoje homens gays brancos conseguem ocupar a cidade com relativa, mas não absoluta, segurança, celebrando o orgulho nas ruas, isso se deve a décadas de lutas travadas por diferentes corpos e vozes que compõem a sigla LGBTQIA+. No entanto, os resultados dessas batalhas são aproveitados, em sua maior parte, por aqueles que têm o privilégio – econômico, racial e territorial – de usufruí-los. Os passeios aos fins de semana pelo Minhocão, o elevado que corta Santa Cecília, Barra Funda e República, e que hoje abriga parte da cena LGBTQIA+ paulistana, tornaram-se um retrato desse recorte. Mas enquanto celebramos o que foi conquistado, é preciso perguntar: para onde foram as travestis e as mulheres trans que antes habitavam a parte inferior do viaduto? Silenciadas e apagadas pela valorização imobiliária, suas presenças foram escondidas para longe dos olhos e das novas rotas “revitalizadas” da cidade.
Enquanto se torna possível que o orgulho LGBTQIA+ seja exibido e celebrado em importantes ruas da cidade, é válido nos questionarmos se ele pode, de fato, ser manifestado em toda parte de São Paulo e pela infinitude de representações da sigla, ou se apenas por aquelas que carregam maior visibilidade e poder aquisitivo para, a partir desse questionamento, nos movimentarmos e agirmos em direção à transformações importantes. Afinal, questionar não é motivo para deixarmos de celebrar. As conquistas devem ser de fato celebradas, mas o esforço para que os resultados delas sejam compartilhados entre todas as representações da sigla, e em todos os espaços da cidade, não pode deixar de existir.
A própria parada pode ser considerada um vislumbre desse esforço. É uma festa pública aberta, na qual todas as formas de representação são convidadas a celebrar suas existências, seus corpos, seus desejos e suas vivências nas ruas da cidade. É, de fato, uma celebração visivelmente mais diversa quando comparada às festas LGBTQIA+ mais conhecidas (e caras) da cidade. E por ser uma festa, seu caráter político some? Acreditamos que não. Na discussão sobre o Direito à Cidade, inclusive, tem-se a festa enquanto uma forma de apropriação do espaço. Para o próprio Lefebvre, a festa é uma concretização do uso do tempo e do espaço, é a explosão do desejo coletivo.
Essa explosão pode ser representada, por exemplo, na diversidade de artistas LGBTQIA+ que se apresentaram nas diferentes edições da parada, como Pabllo Vittar, Glória Groove, Banda Uó, Liniker, entre outros ícones da cena cultural. Por meio da arte, tensionam-se normas e comportamentos, e aquilo que antes era visto como subversivo transforma-se em expressão popular e festiva. O recente sucesso do filme Homem com H, que homenageia o destemido Ney Matogrosso, revela como a rebeldia e a irreverência podem abrir caminhos para novas formas de ação e existência. É admirável o que a cultura brasileira permite e cria, e é essencial que isso seja representado na parada e, consequentemente, na cidade.
Para além dessas representações momentâneas, é importante que haja ação constante para que o cotidiano se torne, de fato, cada vez mais LGBTQIA+. O filosófo, escritor e ativista LGBTQIA+ Paco Vidarte, em Ética Bixa, dentre as várias ideias que merecem ser discutidas e aprofundadas, coloca que assumir-se enquanto LGBTQIA+ não é apenas um gesto identitário individual, mas um posicionamento ético e político diante do mundo. Essa perspectiva nos convida a pensar que nossa presença deve estar na rotina, nos afetos diários, nas pequenas desobediências que reconfiguram o espaço urbano como lugar de existência plena. Estar assumidamente na cidade é reivindicar o direito de habitá-la em sua totalidade, e esse direito precisa incluir todas as letras da sigla, especialmente as que seguem sendo marginalizadas ou invisibilizadas.
Em Se essa rua fosse minha também, Adriana Galuppo amplia essa reflexão e convoca à imaginação política de uma cidade possível que reconheça os desviantes, os outsiders, os não normativos, não como exceção, mas como parte constitutiva de sua paisagem. Isso porque as normas de gênero e sexualidade não apenas moldam os corpos, mas desenham as fronteiras do espaço urbano: quem pode aparecer, circular, ser respeitado. Reconhecemos que ocupar a cidade é mais do que um ato de presença — é um gesto de resistência e de criação. Criar outras formas de sociabilidade, redes de cuidado e visibilidade que não peçam permissão para existir. É um projeto ético, político e coletivo de reimaginar o mundo.