O presidente americano defende uma política comercial semelhante à de Juan Perón na Argentina ou de Getúlio Vargas no Brasil, que deixaram lições para a região. Getúlio Vargas adotou um nacionalismo econômico quando governou o Brasil entre 1951 e 1954, que tem semelhanças com as políticas de Trump.
Getty Images via BBC
Pergunta 1: qual presidente nas Américas utilizou um antigo dispositivo legal para taxar importações e persuadir empresas a instalar fábricas em seu país?
Resposta: Getúlio Vargas, no Brasil, na década de 1950. E também Donald Trump, nos Estados Unidos, neste ano.
Pergunta 2: qual presidente nas Américas declarou a “independência econômica” de seu país em um ato pomposo em que adotou o protecionismo industrial?
Resposta: Juan Domingo Perón, na Argentina, em 1947. E também Trump neste ano.
Determinado a proteger a indústria americana com barreiras tarifárias sobre produtos estrangeiros, Trump se assemelha a líderes latino-americanos que muitos consideram populistas.
Os argumentos do republicano e a maneira como ele promete impulsionar a produção industrial nos Estados Unidos são parecidos com a política de industrialização por substituição de importações (ISI) adotada por Perón, Vargas e outros líderes ao sul do Rio Grande, que marca a fronteira dos EUA com o México.
“A lógica [de Trump] é muito do século passado, e é por isso que se assemelha tanto às experiências latino-americanas com o ISI”, observa Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional, em Washington, coautora de um novo livro sobre o assunto.
Mas tanto ela quanto outros especialistas alertam para as potenciais consequências negativas de tal medida nos EUA atualmente.
“O contexto é completamente diferente e, portanto, a lógica desse tipo de política usada hoje não faz sentido”, disse de Bolle à BBC News Mundo (o serviço de notícias em espanhol da BBC).
“Na América Latina, o ISI foi um fracasso retumbante: não há como argumentar que houve resultados mistos.”
Política abandonada
Acadêmicos apontam há muito tempo as semelhanças de Trump com líderes latino-americanos em suas atitudes políticas: desde se apresentar como o salvador de seu país em oposição à elite, passando pela eliminação da distinção entre líder e partido, até o desafio aos limites da democracia liberal.
Mas a comparação de Trump com líderes latino-americanos por razões econômicas é diferente.
Como presidente argentino de 1946 a 1955, Perón procurou proteger a indústria argentina com tarifas.
Getty Images via BBC
O banco de investimentos JPMorgan Chase observou em um relatório há algumas semanas que “o risco para os mercados é que as autoridades políticas dos EUA repitam os erros de líderes latino-americanos como o ex-presidente argentino Juan Perón: protecionismo, falta de independência do banco central e um desrespeito generalizado pela estabilidade macroeconômica”.
“Ironicamente, muitas economias latino-americanas fizeram progressos significativos nessas áreas, ao mesmo tempo em que os participantes do mercado questionam cada vez mais a credibilidade econômica dos EUA”, acrescentou o relatório do banco.
O ex-presidente da Costa Rica, Oscar Arias, traçou um paralelo semelhante.
“Na América Latina, tivemos o modelo de substituição de importações por muito tempo. Tínhamos um Mercado Comum Centro-Americano com esse modelo. É isso que o presidente Trump está fazendo: o que abandonamos anos atrás”, disse Arias, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em entrevista à BBC News Mundo em abril.
Então, em que consiste essa política?
Liberação
Empresários brasileiros refazem cálculos após Trump dobrar tarifas de aço e alumínio
A estratégia de substituição de importações, ou ISI, adotada do México à Argentina, particularmente entre as décadas de 1930 e 1950, buscava reduzir a dependência do mercado externo e alcançar a autossuficiência econômica após a Grande Depressão e as Guerras Mundiais.
Diante dessa turbulência internacional e da migração das áreas rurais para as cidades latino-americanas, que demandavam empregos urbanos, os governos da região buscaram que as indústrias nacionais produzissem bens de países desenvolvidos.
Com o apoio teórico da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), foram criadas barreiras tarifárias sobre certas importações que pretendiam substituir por produtos locais, além de recorrer a outros instrumentos, como subsídios ou cotas de importação.
O desejo de proteger a indústria local com tarifas é a principal coincidência do ISI com a agenda de Trump, que agora está abalando o comércio global.
“Esta é a nossa declaração de independência econômica”, disse Trump em 2 de abril, quando anunciou, na Casa Branca, um muro tarifário sobre remessas de mercadorias de grande parte do mundo para os EUA.
O conceito de “independência econômica” foi incluído em um documento que Perón assinou em cerimônia solene como presidente argentino em 9 de julho de 1947, quando aumentou as tarifas para industrializar seu país durante seu primeiro mandato.
“A Nação alcança sua liberdade econômica”, dizia o texto de Perón. E ele enfatizou: “livre do capitalismo estrangeiro e das hegemonias econômicas globais”.
“Líderes estrangeiros roubaram nossos empregos, bandidos estrangeiros saquearam nossas fábricas”, disse Trump em abril, referindo-se ao déficit comercial dos EUA. Ele prometeu: “Teremos uma nação muito livre e bela; será o Dia da Libertação.”
Para impor suas tarifas de importação, Trump lançou mão da Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional, de 1977. Esta lei é objeto de uma batalha judicial.
Na semana passada, um tribunal federal declarou ilegal o uso da norma com este fim, mas uma corte de apelações aceitou o seu emprego, pelo menos temporariamente.
Muito antes disso, quando voltou à presidência do Brasil em 1951, Getúlio Vargas também recorreu a um instrumento legal de anos antes para impor suas tarifas de importação.
A “lei do similar” permitia que produtores locais se registrassem, solicitando a proteção do governo contra concorrentes diretos do exterior.
Da mesma forma que Trump nos dias de hoje, Vargas procurava pressionar as empresas estrangeiras para instalarem indústrias no país, sob pena de perderem o acesso ao amplo mercado doméstico brasileiro.
‘Modelo fracassado’
É claro que também existem algumas diferenças.
Perón e Vargas promoveram empresas estatais em amplos setores da economia, do petróleo à eletricidade, enquanto Trump defende a redução do Estado e, ao mesmo tempo, sua intervenção na economia.
Os EUA são agora uma nação desenvolvida, enquanto os países latino-americanos que adotaram políticas de substituição de importações aspiravam alcançar o desenvolvimento por meio da industrialização.
Em toda a região, essas estratégias permitiram que fábricas prosperassem com relativa rapidez, e países como Argentina, Brasil e México se tornaram semi-industrializados antes da década de 1970.
No entanto, a estratégia encontrou vários obstáculos: desde frequentes problemas de balanço de pagamentos, porque as indústrias locais necessitavam de peças e máquinas importadas, até ineficiência produtiva, formação de monopólios e oligopólios e também corrupção.
Algumas medidas adotadas para corrigir essas dificuldades, por sua vez, levaram à inflação, desvalorizações da moeda e desequilíbrios fiscais.
Outro problema apontado por especialistas é que, diferentemente dos países asiáticos, que também implementaram políticas de substituição de importações e passaram a competir globalmente, na América Latina a estratégia foi desenvolvida internamente e fez com que a região perdesse capacidade exportadora.
De Bolle destaca que o México, ao abandonar o ISI para firmar seu acordo de livre comércio com os EUA e o Canadá na década de 1990, conseguiu se industrializar ainda mais e se tornar menos dependente da exportação de matérias-primas.
“Brasil e Argentina nunca escaparam (do ISI) até hoje e têm indústrias nada competitivas”, ressalta.
“A razão é que, com o tempo, essas políticas geram uma espécie de dependência do setor privado em relação ao governo, um fenômeno tóxico que resulta em baixo crescimento e, frequentemente, crises fiscais.”
Um paradoxo é que o atual presidente da Argentina, Javier Milei, é um aliado de Trump, mas criticou “o modelo fracassado de substituição de importações” aplicado em seu país.
Trump, no entanto, mantém sua postura protecionista, apesar de ter modificado parcialmente sua política comercial quando os mercados reagiram negativamente.
Por exemplo, ele reduziu as tarifas sobre produtos chineses de 145% para 30% após um acordo bilateral, em meio a alertas sobre riscos inflacionários.
Mas, na terça-feira (03/06), dobrou as tarifas sobre aço e alumínio estrangeiros (de 25% para 50%), argumentando que isso “fortaleceria ainda mais a segurança da indústria siderúrgica”.
No entanto, novos sinais adversos estão surgindo em relação a essas políticas.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou na terça-feira que o crescimento do PIB dos EUA será de 1,6% este ano, inferior aos 2,8% em 2024, se a tarifa efetiva sobre importações que Trump manteve até meados de maio continuar.
E observou que essa tarifa é a mais alta para os EUA desde 1938: em média, aumentou de cerca de 2,5% no ano passado para mais de 15%.
O alerta de vários economistas é que tais medidas, sem um plano claro, podem incentivar a produção local, mas aumentar o preço das importações e bens intermediários do exterior, o que eleva a inflação e prejudica os setores e trabalhadores que o presidente alega proteger, como demonstra a história da América Latina.
“A lição é que políticas dessa natureza, adotadas por períodos prolongados ou executadas de qualquer forma, têm resultados desastrosos”, diz De Bolle, “e não será diferente aqui nos EUA”.
Repost
