
Como nasce uma cidade na Amazônia, senão de um rio? Aporta, ergue uma palafita e o rio se torna a sua primeira rua. Mas o urbanismo é desenhado sobre linhas duras, apropriadas ao concreto e ao asfalto, ao passo que os rios e as suas margens são curvos, barrentos e alagadiços. Decidiu-se que o belo vinha lá de fora, e assim nasceu o sonho de construir a Paris n’América.
Durante o fim do século XIX e o início do XX, Belém do Pará passou por diversas transformações urbanas. Impulsionada pelo ciclo econômico da borracha, as elites mandaram trazer para a Linha do Equador os desenhos de uma cidade moldada à imagem de Paris, mandaram vir arquitetos italianos, importaram gradis e estruturas de ferro inglês. Foi o que chamaram de Belle Époque, e assim nasceu a Metrópole da Amazônia.
Belém, a fornecer o látex necessário para a indústria crescente de veículos pessoais, integrou-se à dinâmica capitalista global. A modernização das relações de comércio e produção em larga escala refletiu-se no ideário de vida urbana, em contraponto ao ritmo que aguarda a safra dos frutos e acompanha os ciclos de maré baixa e maré cheia para guiar a vida. A métrica adotada tornou-se a do relógio e a do mercado.
Essas motivações impulsionaram um processo de desenvolvimento urbano que se deu de costas para os rios, que restaram aterrados e canalizados – já não combinavam com a estética citadina e moderna transplantada. Cidade ribeirinha que é, viu seu espaço e o de sua gente serem subjugados. Esse processo de desenvolvimento priorizou a capitalização e a urbanização em regiões mais altas do relevo da península belenense, o que concentrou, historicamente, nessas áreas a infraestrutura urbana e a densidade de renda, relegando às periferias as zonas sujeitas aos ciclos de maré e alagamentos. Nasceu aí a financeirização do espaço urbano amazônico, com o surgimento de suas periferias.
Entre o rio e o asfalto
Ao passo que o Estatuto da Cidade caminha para os seus 25 anos, surgindo como um instrumento jurídico para orientar a criação e o desenvolvimento de uma política urbana que priorize cidades mais justas e democráticas, com acesso a moradia e infraestrutura urbana, o Acordo de Paris completa dez anos, sendo uma ferramenta para orientar a ação climática multilateral e empreender esforços para limitar o aumento da temperatura média do planeta a 1,5ºC, sem ultrapassar 2ºC, considerando dados fornecidos por painéis científicos intergovernamentais que indicam prejuízos extensos para o sistema climático nesses cenários cataclísmicos.
Simbolicamente, Belém representa um encontro entre esses dois ciclos de operação, para além da Conferência para as Mudanças Climáticas. Entretanto, o balanço entre esses dois pesos não demonstra um saldo positivo.
Em Belém e nas demais metrópoles amazônidas não existe “favela” no sentido estrito. As nossas periferias são baixas, pois é onde alaga. São chamadas de “baixadas” – mas adotamos chamar de favela, para não precisar explicar tanto. Dados do último Censo apontam que cerca de 56% da população de Belém reside em periferias. Dados de 2022 do SNIS apontam que o acesso a água e saneamento em Belém é precário, bem abaixo da média nacional, com somente 8,7% do esgoto gerado sendo tratado, e isso é o resultado de um processo de produção do espaço excludente e não planejado. Pesquisas recentes apontam que as temperaturas mais altas na região de Belém se elevaram em quase 2ºC em relação às medições de 50 anos atrás, indicando um processo de vulnerabilidade climática crescente.
Frise-se que é nas baixadas onde mais se sente essa emergência urbano-climática. Não sendo planejada, não é arborizada. Não possuindo infraestrutura, alaga. A sensibilidade ao desenvolvimento de ilhas de calor e os prejuízos decorrentes das alterações pluviométricas, que afetam o ciclo das marés dos canais e dos rios urbanos, expõem a população mais vulnerável aos efeitos de uma política urbana que concentra seus investimentos nas áreas centrais.
Os instrumentos do direito urbanístico não operam nas cidades Amazônicas, mas os fenômenos de financeirização do espaço e concentração de renda, sim. A ação climática ainda não surtiu seus efeitos nos territórios urbanos da região, mas a emergência ambiental já se impôs.
Belém aqui e agora
A decisão pela realização da COP em Belém iniciou um novo ciclo de “modernização”. O desenvolvimento de suas obras conferiu uma autoestima metropolitana, concentrando-se em regiões já tradicionalmente centrais, potencializando dinâmicas de financeirização e gentrificação urbana. As periferias permanecem ignoradas, e seu povo transita entre a cidade e a baixada.
As negociações acerca da política climática caminham para um ponto de urgência, afinal, faz-se necessário financiar a ação climática e o desenvolvimento de cidades resilientes, adaptadas e com políticas de mitigação de emissão de gases do efeito estufa eficientes. Contudo, as cidades amazônicas operam sob um urbanismo tardio, transplantado e dissociado de sua realidade geográfica, ambiental e social.
Parto desse lugar, onde a política urbana e as metas climáticas encontram-se, simbólica e geograficamente, nas cidades amazônicas.
A quem quer que me pergunte, defendo que Belém é como o mundo todo. Não uma, nem duas, nem mil. Mas, hoje, serão três: a Belém da COP, a Belém do Povo e mais uma terceira Belém, ainda em disputa – a do futuro. Aqui mora meu apelo: é necessário, mais do que nunca, discutir o urbanismo amazônico, centrado nos rios, nas palafitas e no fazer urbano vernacular que já existiu. Antes de ser ancestral, o futuro é agora.
