A águia brasileira que pousou no Dão – CartaCapital

Era 2021. O mundo ainda vivia sob a incerteza da pandemia quando um grupo de investidores brasileiros decidiu que era hora de realizar um sonho antigo: ter uma vinícola. Guilherme Corrêa, sommelier que passou anos construindo um portfólio de dar inveja na importadora Decanter — Valentini, Soldera, os Mascarellos —, já morava em Portugal e conhecia bem os investidores e o território. 

Primeiro, olharam algumas propriedades na Itália, mas foi em Portugal, mais especificamente no Dão, que a oportunidade se fez presente. A Quinta Mendes Pereira, em Oliveira do Conde, com vinhas velhas de mais de 60 anos, estava à venda. Assinaram o cheque. A segunda decisão foi o nome: domínio de açor (ave de rapina). 

Aí vieram as perguntas que todo produtor enfrenta: que vinho queremos fazer? E quem fará esse vinho? Para responder, Guilherme foi atrás de Luis Lopes. Não tinha o celular do enólogo, que por anos esteve à frente da Quinta da Pellada, uma das mais prestigiadas vinícolas portuguesas. Mandou uma mensagem pelo LinkedIn para Luis Lopes, pouco afeito a receber mensagens pela rede corporativa. 

Luis tinha um currículo muito além de Portugal: estágio na Borgonha com Dominique Lafon (um dos principais produtores de brancos e tintos da região), passagem pela Nova Zelândia e pela Alemanha. Marcaram um encontro.

Para deixar clara a ambição, Guilherme armou uma prova às cegas. Serviu um branco e, depois de Luis provar e aprovar, revelou: era um branco do Dominio del Águila, vinícola que tem reescrito a história dos vinhos espanhóis em Ribera del Duero. “Dá para fazer um vinho desses?”, perguntou. Luis topou o desafio.

Feito o desafio, foi preciso estudar o potencial do solo. Contrataram Pedro Parra, geólogo chileno que virou consultor disputado no mundo do vinho. Na véspera de abrir os buracos para avaliar o subsolo, Parra chamou Guilherme para uma conversa. “Serei honesto: se o terroir não for bom, vou dizer que não dá para fazer grandes vinhos.”

Guilherme engoliu seco. Meses antes, Parra tinha ido ao Napa Valley avaliar uma propriedade adquirida por 100 milhões de dólares. O cheque não mudou a opinião do geólogo, que foi categórico ao dizer ao dono da propriedade californiana que o subsolo não servia para grandes vinhos. Se aquilo podia acontecer com um investimento daquele porte, por que seria diferente ali?

Após uma noite em claro, Guilherme mal conseguiu tomar café da manhã. Quando Parra, metido num dos buracos, o chamou, foi correndo com o coração disparado. O geólogo apontou para os quartzos expostos no solo granítico. O estudo revelou que 55% das parcelas correspondiam à melhor qualidade de quartzo, o que ajuda o vinho a ter raízes mais profundas e fazer sua fruta mais complexa. “O que faz a mineralidade não é a pedra, mas a degradação dela ao longo de milhares de anos”, explicou Parra. 

Recentemente, adquiriram a propriedade vizinha, ganhando mais área e um hectare de Encruzado, uma uva branca que acompanha bem pratos de peixes, como o bacalhau. Em três anos, uma revolução silenciosa se consolidou no Dão. Começou com um cheque assinado durante a pandemia, passou pelo suor frio de uma avaliação geológica e agora se traduz em vinhos que já chamam atenção internacional. Os vinhos são importados pela Clarets, que fez um jantar recente no Nelita com alguns dos rótulos.

Se me permitem um desvio final, resta-me um desejo: descobrir se existe algum jeito de a chef do Nelita, Tassia Magalhães, servir o seu gnocchi coberto com o seu molho al pomodori.  Mas isso é outra história. 

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