
A história das borbulhas mais famosas do mundo está ligada a uma série de mulheres que assumiram as rédeas de negócios vinícolas numa época em que mal podiam assinar contratos sozinhas. A mais famosa delas é Barbe-Nicole Ponsardin. Nascida em 1777, filha mais velha de um rico comerciante de lã em Reims (capital informal da Champagne), sua vida se tornou um retrato da história francesa dos séculos XVIII e XIX.
Com 11 anos, Barbe-Nicole é enviada para a escola do convento real de St Pierre-les-Dames de Reims. Deveria ter sido um refúgio de segurança. Mas era junho de 1789, um mês antes da tomada da Bastilha que desencadeou a Revolução Francesa. A apenas 145 quilômetros de Paris, toda Reims rapidamente foi às ruas em uma erupção de luta de classes. Ela assistiu ao conflito de perto. Logo o pai tomou uma decisão pragmática: se aliou aos revolucionários pedindo a abolição da monarquia.
O jeito pragmático do pai ficaria com a filha, que aos 20 anos, em um casamento arranjado, se uniu a François Clicquot, filho de uma família têxtil também de Reims que estava começando a fazer negócios em vinhos. O casamento não durou muito. Aos 27 anos, ficou viúva e herdou uma casa de Champagne à beira da falência. Era 1805. François Clicquot acabara de falecer, deixando a jovem com uma filha pequena e um negócio que produzia vinhos medianos em uma região já com fama (Napoleão bebia champagne e borgonha), mas sem cifrões condizentes com a reputação.
No século XIX, o Código Napoleônico criava uma série de barreiras para que mulheres pudessem gerenciar negócios sem permissão do pai ou do marido. A exceção era dada às viúvas, o que abriu a possibilidade para que Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin pudesse administrar a vinícola e buscar novos mercados além da França.
Aceitar o desafio foi surpreendente. “Foi uma decisão inusual para uma mulher de sua classe naquele tempo, ela poderia ter vivido o resto da vida dentro de casa ou sendo anfitriã na sociedade”, disse Tilar Mazzeo, autor de um livro sobre Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin, em entrevista à BBC.
Em 2024, o filme A Viúva Clicquot (disponível na Apple TV) trouxe um pouco da história para as telas. Optou-se por uma narrativa intimista e melancólica, dividindo-se entre o passado (o casamento feliz com François) e o presente (a luta para salvar a empresa). Não é um grande filme, mas um bom passatempo, com belas cenas de vinicultura.
Madame Clicquot, como ficaria conhecida, não se contentou em apenas administrar o que herdou. Primeiro, inovou no marketing, buscando reforçar a figura de viúva à frente da vinícola. Criou o primeiro champagne rosé com mistura de vinhos tinto e branco. Seu maior feito técnico foi a criação da mesa de remuage (rotação das garrafas) – mesas inclinadas com furos onde garrafas são sistematicamente giradas para concentrar sedimentos no gargalo. Antes disso, Champagne era turvo, cheio de resíduos. A invenção de Clicquot permitiu a produção de espumantes cristalinos, transformando-os de bebida rústica em símbolo de refinamento. Ganhou boa parte do mercado russo, com os czares aprovando as borbulhas francesas.
Clicquot não estava sozinha. Louise Pommery assumiu a Pommery aos 39 anos, em 1858, também viúva. Foi ela quem popularizou o Champagne brut (seco), contrariando o gosto da época por espumantes adocicados. Antes de Pommery, Champagne era uma sobremesa líquida. Depois dela, tornou-se a bebida sofisticada que conhecemos.
Lily Bollinger, outra viúva ilustre, comandou a Bollinger de 1941 a 1971, atravessando a Segunda Guerra Mundial escondendo garrafas dos nazistas e mantendo a qualidade em tempos árduos. Nos anos em que a Guerra tinha tornado a abundância raridade, percorria os vinhedos de bicicleta. Combinou métodos tradicionais com novidades, como a vinificação de champagne em pequenos toneis de madeira, uma maneira de fazer a micro oxigenação criar espumantes que tivessem longa vida. Em 1967, lançou ao mercado uma invenção sua: um champagne inovador envelhecido por anos sobre suas borras. Foi um grande sucesso quando lançado.
Normalmente, após a segunda fermentação em garrafa (que cria as bolhas), o Champagne permanece sobre as borras (leveduras mortas) por um período determinado – geralmente três anos para não-vintage, mais para vintage. Depois desse tempo, faz-se o dégorgement (desgorgamento): remove-se a borra, adiciona-se o licor de expedição e a garrafa é imediatamente comercializada. Lily Bollinger inverteu a lógica. O vinho permanece sobre as borras por muito mais tempo – às vezes uma década ou mais – desenvolvendo complexidade extraordinária.
Ainda tornou lendária uma de suas frases: “Bebo Champagne quando estou feliz e quando estou triste. Às vezes bebo quando estou sozinha. Quando acompanhada, considero obrigatório. Caso contrário, nunca toco nele, a menos que esteja com sede”.
Da próxima vez que brindar com Champagne, lembre-se: você está celebrando com uma bebida que mulheres salvaram, aperfeiçoaram e transformaram em ícone global. Em um mundo que insistia em silenciá-las, elas falaram através das borbulhas.
E o mundo, felizmente, ouviu, bebeu e aprovou.
