
O anúncio é recente: depois de dar notas para restaurantes e hotéis, o Guia Michelin agora vai classificar vinícolas, distribuindo “Uvas” (uma, duas ou três) com a mesma lógica que aplica à classificação de restaurantes. Uma estrela vale a parada; duas, um desvio; três, “uma viagem especial”.
A estratégia remonta à origem da empresa. Quando os irmãos André e Édouard Michelin fundaram uma fábrica de pneus, perceberam que a demanda era um problema. Havia poucos carros; os pneus duravam tempo demais. Pensaram, então, em mudar o comportamento dos motoristas, encorajando-os a dirigir mais. Nascia assim o Guia Michelin — originalmente, um livreto gratuito desenhado para tirar o motorista de casa.
Quase um século depois, o guia é uma fatia minúscula do faturamento de 28 bilhões de euros da Michelin, mas seu peso cultural é colossal. Ele empresta à fabricante de pneus a aura de excelência e confiabilidade, uma masterclass de diversificação de marca e poder.
Esse movimento se intensificou no fim dos anos 2000, quando a Michelin ingressou na área de vinhos adquirindo participação no Robert Parker Wine Advocate, a publicação do mais famoso crítico do mundo, responsável por popularizar a escala de 100 pontos que dita os preços globais.
Questionado sobre qual a política que o guia adotará, já que detém a publicação de Robert Parker, Lorent Menegaux, CEO do Grupo Michelin, foi pragmático ao declarar à La Revue du vin de France que “a marca Michelin é muito mais forte que a marca Wine Advocate“. Segundo ele, a intenção não é substituir a crítica técnica de Parker, mas criar um selo de aprovação corporativo, mais amplo e comercialmente poderoso.
Ao lançar seu próprio selo para as propriedades, o grupo consolida-se não apenas como árbitro do gosto, mas busca mais. As primeiras distinções dadas pelo guia no mundo de Baco se concentrarão em Bordeaux e Borgonha, em que cada pedaço de terra vale milhões de euros. Poderá haver ainda mais dinheiro na mesa.
Estudo do grupo JFC estima que restaurantes estrelados rendam 438 milhões de euros em gastos indiretos anuais só na Itália. Ganhar uma estrela pode aumentar a receita de um restaurante entre 20% e 100%.
Se, para a Michelin, o jogo é financeiro, para o consumidor é social. Em seu livro Coisa de Rico, o antropólogo Michel Alcoforado defende a ideia de que o consumo de luxo serve, fundamentalmente, para que os endinheirados se diferenciem dos pobres – e provar aos outros ricos a adesão a um clube invisível.
Alcoforado relata a prática em restaurantes estrelados (muitos deles pelo próprio Michelin) onde os garçons são treinados para que, mesmo depois de encerrada a refeição, não retirem a garrafa de um vinho caro, mesmo vazia. O troféu deve permanecer.
No livro, Alcoforado descreve que alguns sommeliers são treinados para captarem nuances além de terroirs e rótulos. Ao observar o corte do terno, a marca do relógio e até o tecido da roupa do cliente, os profissionais devem decidir qual carta de vinhos entregar: a “barata” ou a “premium”, reservada aos milionários com rótulos acima de 10 mil reais. Se o cliente não passa na inspeção visual, recebe a carta comum.
O novo guia de vinhos da Michelin pode agir como esse sommelier julgador, mas em escala global. Como lembraria Pantagruel, o melhor retorno sobre o investimento ainda deve ser o prazer de beber… antes que o inspetor, ou o sommelier que julga seu relógio, chegue à mesa.
