“A escravização de seres humanos é o sinete marcando o mais fundo daquilo que fomos e daquilo que continuamos a ser. Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo ocorre com o indígena, com os párias da terra e com os trabalhadores semilivres superexplorados das cidades” – Florestan Fernandes
A semana que se encerrou trouxe duas grandes surpresas, uma em âmbito internacional e outra no contexto nacional.
No plano internacional, após a vitória da extrema-direita francesa nas eleições para o Parlamento Europeu, o presidente da França, Emanuel Macron, tentou uma cartada que resultou terrivelmente errada para ele e o partido, mas certíssima para o País.
Ocorre que, ao dissolver o Parlamento e convocar eleições nacionais, Macron não considerou a possibilidade de que houvesse uma reunião das forças políticas de esquerda, as quais, somadas, constituíram a segunda força política daquele pleito europeu.
Ora, foi justa e – quse milagrosamente – o que ocorreu.
Dessa forma, como o sufrágio ocorre em dois turnos e é majoritário, a agregação política dele está virtualmente fora do segundo turno; todo o contrário do que, maquiavelicamente e ingenuamente, calculara: que se reproduziria o quadro que o elegeu. Com efeito, no segundo turno da eleição presidencial, o eleitorado francês, confrontado com a escolha entre ele e a candidata de extrema-direita, preferiu-o, como mal menor.
A partir de então, ele usou e, principalmente, abusou das prerrogativas presidenciais, dirigindo o país na forma do passado absolutista pré-revolução de 1789.
De fato, mais parecia emular o próprio Luís XIV, o autor do epíteto: “Depois de mim, o dilúvio”.
Foi o que se viu.
A edição de domingo do quotidiano espanhol El País traz na manchete principal: “Macron empurra a França e a Europa a terreno desconhecido”.
Deu tudo errado para o aprendiz de feiticeiro, que deveria melhor observar como os simples palitos de fósforo, uma vez caídos, jamais formarão o mesmo desenho, como as águas de um rio nunca serão as mesmas.
O tempo foge, já diziam os latinos.
Pior, ele terá, quase certamente, de dividir o poder, em coabitação, com a extrema-direita ou com a esquerda, por longos três anos, até o final de seu mandato, em 2027.
No âmbito nacional, não foi melhor para o presidente da Câmara dos Deputados.
Ao tentar aprovar, em regime de urgência, um projeto de lei que faria o País retroceder à Idade Média (pelo menos), impondo pena à vítima de estupro que desejasse abortar, superior àquela prevista para o próprio estuprador, o presidente da Câmara deparou-se com manifestações massivas nas principais capitais do País, tendo de recuar de sua tentativa de mais uma vez impor uma legislação teocrática, que seria parte da barganha política que lhe garanta a sucessão e as “costas quentes”, de que não podem prescindir os que como ele operam.
Pela primeira vez, no longo mandato, quem tiranizou teve os limites claramente delimitados, pelo povo na rua, seu melhor lugar.
Vale notar que é a chamada bancada da bíblia o principal instrumento político e cultural de instilação do conservadorismo na sociedade brasileira. A ela cabe confundir, sempre que possível, Estado e religião, apagando, em qualquer oportunidade que se apresente, os limites entre o que interpreta (manipula) como moral cristã e o Estado laico.
Ao lado disso, seu papel é permitir, sempre mais, a utilização da religiosidade para fins político-partidários, como fez e faz a extrema-direita, em proveito de seu projeto colonial, racista, misógino, homofóbico.
Para isso, como já dissera Shakespeare, os demônios não hesitam em citar as próprias Escrituras em proveito próprio, como se viu recentemente na votação em que votaram pela não-penalização de geradores de “fake news“; ou seja, para atingir seus objetivos propugnam a utilização da própria mentira. São, então, filhos da verdade? Não são rebentos da mentira, daquele que é o inimigo da verdade…
Não tenhamos dúvida, ninguém nasce com sentimento de superioridade, racista, misógino ou homofóbico. Todas essas distorções são instaladas nas crianças, nos jovens e nos adultos.
Mas aquela bancada não age sozinha.
Para isso estão os militares de direita e o governador de São Paulo, com suas escolas cívico-militares, que têm precipuamente aquela finalidade, além de aparente cabide de emprego para militares aposentados, inclusive da PM.
Fica a pergunta: se corretamente dizemos “empobrecidos” e não “pobres”, pois não o são, mas deprivados de terras, territórios, riquezas, saúde e educação, entre outros direitos, por que também não dizemos “enconservados” para aqueles submetidos às distorções politico-ideológicas propagadas pela extrema-direita?
Assim é que Umberto Eco, em Construir o Inimigo (editora Record), cita como se gerava o ódio no 1984, de George Orwell, até que se chegasse ao paroxismo do exercício de odiar:
“A coisa mais horrível dos Dois Minutos de Ódio não era ser obrigado a participar, mas ao contrário o fato de que era impossível não participar. (…) Um êxtase pavoroso de medo e ânsia de vingança, um desejo louco de matar, de torturar, de esmagar rostos com uma marreta parecia circular através de todo o grupo como uma corrente elétrica, transformando cada um deles, mesmo contra a vontade, num demente que vociferava e arreganhava os dentes”.
Que não nos deixemos intoxicar por nenhum tipo de ódio que nos seja instilado, inclusive por aqueles que se passam por defensores da liberdade, mas que, na verdade, só o são da mentira, da ignorância e do medo do outro, simplesmente por ele ser diferente.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.