Por que a guerrilha de esquerda mais antiga da Colômbia segue apostando na luta armada? — Brasil de Fato

A última guerrilha colombiana em armas não quer repetir a história da desmobilização das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Com 61 anos de atuação, o Exército de Libertação Nacional (ELN) entende que desarmar suas tropas seria colocar um ponto final na tentativa de promover uma transformação social profunda que, mesmo com o primeiro governo progressista da história do país, ainda está distante de se tornar realidade. No entanto, a decisão de permanecer em conflito armado prolonga uma guerra que já dura mais de seis décadas. 

O Brasil de Fato esteve na Colômbia e conversou com lideranças do ELN de diferentes regiões do país. O grupo não só mantém sua atuação nos territórios como consegue influenciar na política colombiana, mesmo às margens da institucionalidade. As ações promovidas pela guerrilha mobilizam a estrutura estatal, que passa a responder tanto com ataques militares, como com uma diplomacia que, até agora, levou a um cessar-fogo que durou apenas 1 ano. 

Mas isso mantém a esperança de uma revolução armada para na Colômbia? Para os guerrilheiros, o domínio de territórios e uma série de estruturas é suficiente para manter as frentes de batalha e os conflitos nos territórios em busca das “mudanças profundas” exigidas pela guerrilha. 

O grupo passou, ao longo do tempo, por transformações não só na forma de se organizar, como também na ocupação do território e na relação com o governo. E esse processo foi se moldando de acordo com a política colombiana e outros atores foram surgindo em mais de 60 anos.

Formação do ELN

“Nós surgimos para fazer o enfrentamento às oligarquias que comandam a Colômbia há centenas de anos e fazer uma revolução”. É assim que os guerrilheiros mais antigos definem a fundação do ELN. 

A guerrilha organizada tem sua origem na região de Santander, nas montanhas que fazem fronteira com a Venezuela. O ELN foi fundado depois de uma guerra civil desencadeada pela morte de Jorge Eliecer Gaitán, um líder do Partido Liberal muito popular entre os pobres e os camponeses.

Em junho de 1964 foi formado o núcleo da guerrilha, que começou seus treinamentos em San Vicente de Chucurí, na região leste da Colômbia. Esse mesmo grupo liderado por Fabio Vásquez Castaño divulgou, seis meses depois, o manifesto e o programa político após a tomada de Simacota, uma cidade de Santander. Ali o ELN começava sua atuação que criou raízes e se espalhou hoje para 22 dos 32 estados do país, segundo a Defensoría de los Pueblos.

O crescimento da guerrilha fez com que fosse preciso reorganizar a divisão administrativa por frentes. Hoje existem frentes que centralizam os trabalhos de uma região inteira (como Norte, Sul, Leste e Oeste) e, dentro dessa divisão, existem frentes menores de atuação em diferentes estados dessas regiões. 

Cada frente é responsável por uma região e lida com as questões particulares daquele estado. Tudo isso dentro de uma perspectiva de transformação social. 

O governo colombiano estima hoje que a guerrilha tenha em torno de 6 mil integrantes. Já o próprio grupo diz que esse número é maior e que conta hoje com mais militantes desarmados do que guerrilheiros que estão nas frentes. O apoio seria ideológico, administrativo, além de produtivo, com camponeses que estão no território. 

Esse, inclusive, é um dos principais focos de atuação do ELN e remonta à própria criação da organização. A disputa pela terra e a concentração de áreas produtivas nas mãos de grandes produtores no interior do país levou camponeses a se juntarem ao grupo com a reivindicação por uma reforma agrária no país. 

A partir daí, o ELN foi se moldando em torno desse debate sobre as terras colombianas e a necessidade de uma transformação no modelo de Estado. 

Formação ideológica

Desde o início, o ELN se constituiu como uma organização ideológica, somando o referencial marxista-leninista com a teologia da libertação –movimento que surge dentro da Igreja Católica para lutar contra a desigualdade na América Latina. Alguns dos membros fundadores do ELN tinham ligações diretas com a Igreja Católica.

Essa tendência foi trazida para o ELN pelo padre Camilo Torres Restrepo, que entrou na guerrilha em 1965. Em fevereiro de 1966 ele morreu em combate e entrou para a história como uma das referências para a formação das comunidades eclesiais de base na América Latina, nas décadas de 70 e 80. Três anos depois de sua morte, outros três sacerdotes, os espanhóis Manuel Pérez, Domingo Laĩn e José Antonio Jiménez Comín, chegaram à guerrilha.

Tudo isso constituiu o que hoje são as bases ideológicas da guerrilha que afirma ter um rigor na manutenção desses valores e, principalmente, na transmissão para os novos integrantes. 

ELN se constituiu como uma organização ideológica, somando o referencial marxista-leninista com a teologia da libertação, trazida para o ELN pelo padre Camilo Torres Restrepo em 1965 | Reprodução

Parte importante desse processo é a forma que o grupo recruta novos membros. A organização afirma que não aglutina novos integrantes de maneira forçada. Muito pelo contrário. De acordo com as lideranças, o processo de entrada no grupo se dá de maneira voluntária por pessoas que acreditam nos ideais do ELN.

“Nós vemos as dissidências e o tráfico crescendo do dia para a noite, mas para nós é mais difícil. Nós temos método para recrutar novos integrantes”, disse uma das lideranças ao Brasil de Fato.

O processo de ingresso na guerrilha começa pelo departamento ideológico, que é quem sustenta as bases políticas e teóricas da organização. Esse setor é responsável pela formação dos militantes por meio da Escola de Combatentes. A ideia é formar o guerrilheiro com base na linha política do grupo. Para isso, é preciso “entender o que é ser um guerrilheiro do ELN” e ter também o preparo teórico para continuar na guerrilha. 

Mas a manutenção da ideologia é uma das críticas que o grupo enfrenta. Na esquerda colombiana há um debate sobre o quanto o ELN preserva uma tese revolucionária entre as antigas lideranças e o quanto os mais jovens perderam a capacidade de reprodução desses ideais em meio a uma tensão permanente no território. 

Para a velha guarda, o treinamento e a formação garantem que os jovens tenham uma conduta que se aproxima dos mais velhos. As lideranças chamam isso de um “falso dilema” que a direita tenta plantar de fora para dentro da organização. 

Um dos preceitos que o ELN garante manter é o não envolvimento com o tráfico de drogas. Mesmo com acusações de envolvimento com a produção e venda de coca, o grupo afirma que nenhum vínculo foi provado com qualquer etapa da transformação, transporte e venda de cocaína. 

O dia 6 de outubro era uma segunda-feira fria em Bogotá. A reportagem do Brasil de Fato se encontrou em uma cafeteria no centro da cidade com uma das lideranças responsáveis pelo diálogo entre o ELN e o governo. Militante antigo do grupo, ele não se furta em responder a nossa pergunta: “já que a organização não atua em atividades ilegais, como o ELN se financia?”.

“Da mesma forma que o governo”, responde de maneira direta. 

Cobrança de impostos de produtores rurais, mineradores, transportadores, oleodutos e até de petroleiras. Essa é a forma que o Exército de Libertação Nacional arrecada. “Isso é algo que teremos que resolver e negociar em algum momento”, conclui um dos interlocutores.

Uma outra forma é a atuação conjunta na produção de alimentos no país. Ainda assim, o grupo também assume que cobra impostos da produção de coca na Colômbia. 

“Também cobramos daqueles que vão comprar coca no território. Não se parece tanto com a dinâmica das finanças do Exército de Libertação Nacional em sua origem, mas também é uma força que desenvolve suas capacidades produtivas, tentando produzir alimentos. Nós exigimos, por exemplo, que os que cultivam coca também cultivem alimentos e coloquem isso no mercado”, disse.

Território em disputa

A cidade de Curumaní fica no norte da Colômbia, proximo da região do Catatumbo. Um calor de 40ºC marca o clima de uma cidade que é pautada pelas disputas entre o ELN, dissidências das Farc, narcotráfico e paramilitares. Pouco mais de 44 mil habitantes são afetados diretamente pela tensão no município. O lugar fica a 13 km da fronteira com a Venezuela e uma rodovia cruza a cidade no meio. 

A chamada Rota do Sol liga o interior do país com as saídas para o Atlântico e o Caribe. Por ser uma via estratégica para a Colômbia, especialmente no escoamento, muitos caminhões transitam pela região e dão o tom de uma paisagem que, em janeiro de 2025, viveu cenários de guerra. Ao todo, 60 mil pessoas foram deslocadas da região por conflitos entre o ELN, o Exército colombiano e a Frente 33, uma dissidência das Farc.

Para chegar lá, é preciso pegar um ônibus e viajar cerca de 16 horas saindo de Bogotá. A reportagem do Brasil de Fato foi a Curumaní depois de um contato feito com lideranças da guerrilha. 

A comunicação com o grupo é feita de maneira analógica. As reuniões não podem ter celulares ligados e os contatos com as lideranças acontecem em espaços públicos que não sejam suspeitos, como grandes redes de lanchonetes, cafés e até shoppings. A discrição também faz parte da estética dos guerrilheiros que circulam em áreas urbanas. Não chamar a atenção é o código. Mas uma marca deixa escapar especialmente entre os guerrilheiros mais antigos: o uso da boina. 

Todo esse movimento não é à toa. Os guerrilheiros ainda vivem sob ameaças não só das forças de segurança. Uma dessas ameaças é justamente de outros grupos que hoje se dizem guerrilheiros. 

As lideranças do ELN afirmam que os últimos acordos de paz que levaram à desmobilização das Farc foram fracassados em vários sentidos. Primeiro porque o governo não cumpriu com sua parte do acordo e a participação do novo partido que surgiu ficou limitada. Depois porque criou uma série de resistências dentro das Farc que não queriam perder o controle territorial que já tinham conquistado, o que levou ao surgimento das dissidências. 

E se o ELN enfrenta críticas pela preservação da sua ideologia, as dissidências são acusadas até mesmo pela esquerda mais radical colombiana de terem perderam completamente o propósito ideológico das Farc. A percepção geral é de que esses grupos agora estão envolvidos diretamente com atividades como mineração ilegal e tráfico de drogas. Essa também é a acusação do ELN e do próprio presidente Gustavo Petro. Em março, o mandatário chegou a afirmar que esses grupos atuavam como um “exército privado dos cartéis mexicanos” do narcotráfico.

Mas as dissidências se tornaram apenas mais um foco de conflitos com o ELN. A organização já passa por confrontos violentos com os grupos paramilitares – milícias reacionárias financiadas por diferentes setores econômicos para acabar com insurgências de esquerda na Colômbia ou controlar territórios. Mas nem as dissidências, nem os paramilitares são a principal preocupação do Exército de Libertação Nacional. Para as lideranças da guerrilha mais antiga do país, o adversário ainda é o Estado colombiano. 

“O principal inimigo é o Estado colombiano comandado pelas oligarquias. Esses outros grupos mudam constantemente seus modelos e estratégias operacionais. Os estadunidenses não querem mais sujar as mãos, então contratam mercenários. Usam os paramilitares e esses dissidentes para nos confrontar. Então, é claro, temos que lutar contra eles antes de lutar contra os outros; eles nos forçam a lutar contra essas pessoas antes de focarmos no nosso projeto de transformação”, disse um dos interlocutores ao Brasil de Fato.

Altos e baixos

Ao longo desse período, o ELN teve momentos em que considerou estar mais perto de cumprir seus objetivos e outros com menor grau de articulação. O momento mais crítico se deu em 1973, depois de uma ofensiva do Exército chamada de Operação Anorí, que destruiu uma parte importante da estrutura que havia sido construída e matou uma série de guerrilheiros. 

Aquele foi o primeiro grande choque e que, para os guerrilheiros que seguem ativos hoje, foi o maior baque da história do grupo. Além de enfraquecer a estrutura de comando, o ELN se viu obrigado a participar das primeiras negociações com o governo em 1975. A guerrilha também teve que se reestruturar na fronteira com a Venezuela no que é lido hoje como o “ressurgimento das cinzas” da organização. 

Manuel Pérez, conhecido como El Cura, e Nicolás Rodríguez Bautista, o Gabino, assumiram o controle do ELN. Eles eram responsáveis pela atuação nos estados de Casanare e Boyacá, no norte, e Nariño e Putumayo, no sul da Colômbia.

Nas décadas seguintes, o ELN passou a se financiar por meio de sequestros, extorsões e ataques à infraestrutura petrolífera. Na década de 1980, o grupo começou a atuar com a Frente Domingo Laín cobrando taxas de empresas multinacionais que perfuravam poços de petróleo no estado de Arauca.

Hoje, as lideranças afirmam que o ELN não está forte o suficiente para “tomar o poder”, mas também não está “encurralado” para abandonar os planos e recuar a ponto de deixar de ter uma atuação contundente. 

“O ELN é uma organização política enraizada no povo, no movimento popular, em suas próprias formas organizacionais, em sua própria dinâmica. É uma organização clandestina, uma organização política ligada a questões sociais. Então, haverá momentos em que eles conseguirão nos diminuir. Não é o caso de agora”, disse uma das lideranças do grupo.

Acordos de paz

Desde o surgimento das guerrilhas na Colômbia, diferentes governos tentaram buscar acordos para desarmar as insurgências. O presidente que mais avançou neste sentido foi Juan Manuel Santos que, em 2016, conseguiu desarticular as Farc. 

Gustavo Petro assume em 2022 como o primeiro presidente progressista da história do país, em um movimento que levou esperança até para os guerrilheiros. O atual mandatário é ex-integrante da guerrilha M-19 e implementa, logo de cara, a política de “paz total”, que foi formalizada pela Lei 2272/2022. A ideia do governo foi transformar a paz em política de Estado e abriu duas vias: negociação política com guerrilhas e submissão à Justiça para grupos do crime organizado. Mas a guerrilha afirma ter se decepcionado com o mandatário. 

Com o ELN foi firmado um cessar-fogo bilateral, a criação de mecanismos de verificação com participação da Organização das Nações Unidas (ONU) e envolvimento de organizações da sociedade civil. Mas a trégua foi instável e, diante da pressão da direita e de setores militares, os diálogos entraram em suspensão no início deste ano.

Alguns pontos são levantados pela guerrilha como fundamentais nessas negociações. Primeiro a falta de um compromisso do governo em promover mudanças estruturais. De acordo com as lideranças, as autoridades não apresentaram um plano real de transformações no modelo de Estado. Sem isso, as negociações são inúteis para o ELN. Há também uma tentativa forçada de desarmar a guerrilha, assim como foi feito com as Farc, com um agravante: alguns acordos firmados pelo governo não foram cumpridos. 

Momento histórico: Governo da Colômbia e as FARC assinam o acordo de paz em novembro de 2016
Em 2106, o governo da Colômbia e as FARC assinaram o acordo de paz, mas alguns termos do acordo não foram cumpridos | Getty Images/AFP

“Acreditamos que não seja possível em 2, 3 ou 4 anos. Mas o mundo todo está fazendo planos estratégicos para 40 ou 50 anos. Os chineses estão fazendo planos estratégicos para 60 anos. Pensamos em 30 anos para caminhar para onde queremos que nossa sociedade chegue. E vamos permitir que as pessoas participem disso também”, afirma o grupo.

Foram 28 acordos assinados entre a guerrilha e o governo. O grupo reconhece que houveram avanços ao longo dos últimos anos, que estruturam saídas para uma solução pacífica, mas que os acordos não atacam a causa do problema. 

E ainda há outro ponto que, para o ELN é fundamental: a equiparação das guerrilhas com grupos criminosos. Segundo a organização, a forma como as negociações são conduzidas com grupos de tráfico e com paramilitares fazem com que fenômenos diferentes sejam tratados da mesma forma. 

“O tráfico quer ampliar a exploração territorial e manter o modelo de capitalismo exploratório. Essa é a dinâmica interna desses grupos. O paramilitarismo atende a interesses empresariais. Então são lógicas políticas muito diferentes da nossa”, afirmam os líderes.

Para isso, o grupo cobra o respeito ao que foi firmado em fevereiro de 2023 em reuniões no México. Na ocasião, as negociações avançaram e o primeiro ponto é a “caracterização jurídica do ELN como organização política armada rebelde com a qual o Governo Nacional está negociando a paz”.

Um último aspecto é de caráter geopolítico. A conhecida influência dos Estados Unidos, que opera há décadas bases militares na Colômbia, e as ameaças de ações militares por parte do governo de Donald Trump também pesam na análise do ELN. Para os líderes ouvidos pelo Brasil de Fato, diante da ofensiva do capital e do imperialismo sobre as riquezas do continente, a resistência armada recobra importância.

Enquanto não sente que é possível ter uma transformação social profunda pelo Estado, o ELN afirma que seguirá em armas, mesmo que haja uma distância ainda maior para uma real revolução armada.  

Repost

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *