Pleito legislativo na Argentina define futuro da 'política de motosserra' de Milei — Brasil de Fato

Neste domingo (26) eleitores argentinos renovam a composição de sua Câmara de Deputados e do Senado Federal. O pleito é crucial para o futuro das políticas de cortes públicos e arrocho que o presidente, Javier Milei, pretende implementar, caso consiga apoio legislativo suficiente.

Metade da Câmara dos Deputados da Argentina, ou 127 cadeiras, e um terço do Senado, ou 24 cadeiras, serão disputadas. Pesquisas mostram pequena vantagem para o partido de Milei (La Libertad Avanza) com 36,7% dos votos, contra 34,8% da Fuerza Patria, a frente peronista e principal grupo de oposição, em um empate técnico.

Tal empate não estava nos planos do mandatário de extrema direita eleito em 2023 com um discurso antissistema e promessas de resolver a crise econômica do país. Ao custo de aumentar em muito a quantidade de argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza, Milei conseguiu reduzir a inflação – fantasma que assombra há muito tempo a sociedade do país – e por algum tempo, estabilizar o dólar. Mas a percepção é de que o preço das medidas de austeridade está caro demais.

Tal percepção se manifestou em uma derrota eleitoral muito maior do que todos haviam previsto, no começo de setembro, quando a província de Buenos Aires – a maior do país – elegeu seus legisladores.  No pleito, o peronismo de centro-esquerda, venceu com cerca de 47% dos votos contra 33,8% do partido governista.

Muito arrocho pra nada

Ao Brasil de Fato, a professora do departamento de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Miriam Gomes Saraiva disse que “Milei se elegeu com base em uma promessa que não foi cumprida, o que o fez perder popularidade”.

“Recuperar apoio popular é possível, no meu entender, somente se a economia melhorar bastante, melhorando a vida das pessoas”, diz ela.

O economista argentino especialista em tendências sociais e consumo Guillermo Oliveto concorda, lembrando que há dois anos o eleitor argentino disse “‘Votei nisto porque entendo que me permite curar de um processo que havia se tornado muito sufocante’, mesmo que tenha que caminhar pelo deserto por um tempo. Isto deu a Milei um bônus, um extra de tolerância”. À AFP, ele explicou que “por isso ele pôde aplicar um ajuste duríssimo, com uma queda do consumo cotidiano só comparável à de 2002, que foi a pior crise da história da Argentina”.

“‘Tudo bem, eu aguentei a motosserra, tive uma paciência inédita, seis meses, um ano, 2024. Em 2025, gostaria de ver algum oásis’. Mas elas não veem isso. O que era um estado de espírito estoico, de prudência e moderação, agora se tornou sacrificial.”

“Quando alguém de seu círculo íntimo fica sem emprego, a paciência se esgota. Em uma situação de perda de poder aquisitivo, se você tem como gerar renda, mais ou menos consegue lutar. Se perde sua fonte de renda, está fora do jogo. Mais de 200 mil postos de trabalho foram perdidos. A sociedade acompanhou um ajuste muito duro com 60% de aprovação para Milei. Hoje esse número é de 38%”, complementa Oliveto.

O fator Trump

Duas semanas após a acachapante derrota derrota em Buenos Aires, Milei gastou cerca de metade de seu discurso perante uma (esvaziada na hora de sua fala) Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas para elogiar o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu tarifaço, que chamou de “reestruturação sem precedentes dos termos do comércio internacional”. À época, o governo argentino negociava um empréstimo para estabilizar o câmbio de US$ 20 bilhões (R$ 107 bi) com os EUA, o que explica a tentativa exagerada de tentar agradar o magnata estadunidense.

Tal empréstimo foi formalizado em 20 de outubro e Trump prometeu outros US$ 20 bilhões. Mas apenas caso Milei vença as eleições. “Estamos aqui para apoiá-lo nas próximas eleições. Se vencer, seguiremos juntos. Se perder, não seremos generosos”, disse o suposto amigo que preside os EUA. A frase transformou o que deveria ser um momento de glória para Milei em incidente diplomático, considerado dentro da Argentina ingerência externa na política do país.

Presidentes dos EUA Donald Trump e argentino Javier Milei durante encontro na Casa Branca
Trump concedeu US$ 20 bilhões em empréstimos, mas condicionou outros US$ 20 bi à vitória de Milei. | KEVIN DIETSCH / AFP

Quem pagou por isso foi o ministro das Relações Exteriores Gerardo Werthein, acusado pela própria Casa Rosada de não ter informado corretamente à equipe de Trump que as eleições não seriam presidenciais, mas sim legislativas. Diplomatas argentinos rebateram a acusação do governo como “absurda” e o próprio Trump disse depois saber bem o que estaria em jogo neste pleito.

“Não creio que a sociedade argentina se sensibilize pelas ameaças do Trump. Eu acho que elas vão votar ou não vão votar no Milei, não por conta das ameaças do Trump”, afirma Miriam Gomes Saraiva.

“Também não é tão claro o que ele considera vencer. É formar mais de 50%? E se formar 48% vai seguir apoiando? E se tiver 46% do Congresso é derrota ou vitória? Nas últimas enquetes o partido de Milei estava um pouquinho à frente do peronismo. Isso significa vitória?”

“Se ele vier a ter uma derrota contundente, aí pode ser que o Trump abandone. Mas, se o resultado for essa linha de meio, uma pequena derrota, ou pelo menos uma vitória não suficiente, que é o que indica, aí imagino que não, que o Tump não vai cortar de uma vez os recursos”, diz ela.

Em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, o sociólogo argentino Pablo Semán avaliou que o gesto de Trump deve ter um efeito contrário ao desejado, agravando a instabilidade política e econômica do país.

“A intenção do Donald Trump talvez fosse fortalecer o governo de Javier Milei, mas a reação da população e dos investidores é, de alguma forma, contrária”.

Pesquisa realizada entre setembro e outubro pela consultoria Zuban Córdoba indicou que 60% dos argentinos têm uma visão negativa sobre Donald Trump. Outro estudo, da consultoria Zentrix revelou que 58% dos argentinos se opõem à concessão de assistência financeira do Tesouro dos EUA à Argentina.

Vão desligar a motosserra?

Milei nunca teve maioria no Parlamento, o que dificultou seu projeto de esquartejar o aparato estatal com sua imaginária motosserra, símbolo da campanha eleitoral que o alçou à Casa Rosada. Até o vexame nas urnas de Buenos Aires, tal maioria parecia inevitável, assim como a aprovação de um dos principais planos de seu governo, o projeto Argentina Grande Otra Vez (a semelhança com o slogan Maga de Trump, Make America Great Again, ou Torne a América Grande Novamente não é coincidência ou falta de criatividade).

O plano de Milei combina reformas trabalhista e tributária: salários em dólar, não renovação automática de acordos coletivos e redução da força de trabalhadores em litígios trabalhistas. Ou seja, precarizar ainda mais as condições de trabalho de seus compatriotas, no que a professora da UERJ considera um plano “bastante complicado”.

“É um plano bastante liberal e nos faz lembrar o plano do Carlos Menem na virada dos anos 1990, que teve apoio por ter acabado com a inflação, que estava acima de 2.000% por ano na época. Mas a sociedade argentina ficou bastante traumatizada com a crise horrorosa que o plano gerou em 2002, que levou uma enorme quantidade de argentinos para a miséria.”

Miriam Gomes Saraiva cita ainda outros motivos que podem levar à aposentadoria da motosserra nos dois últimos anos de mandato de Milei. Além do estilo agressivo, cada vez mais criticado pelos argentinos, o escândalo de corrupção envolvendo sua irmã e secretária-geral da Presidência, Karina Milei, acusada de receber propina.

“O escândalo com a irmã deve ser só uma gota d’água, que no último momento dá argumento para alguém dizer, ‘bom, não voto mais’. Mas se a economia estivesse bem , acho que isso aconteceria, não creio que Milei perderia tantos votos”.

Polarizada como o Brasil entre a extrema direita e o centro-esquerda, a Argentina e seu eleitorado devem se comportar, segundo a analista, como os eleitores brasileiros. “Imagina aqui no Brasil os planos e as ideias do Bolsonaro. Era sempre a mesma coisa, os que apoiam apoiam, os que não apoiam não apoiam. A Argentina está vivendo uma polarização muito grande, assim como nós vivemos.”

No pleito deste domingo, o partido de Milei (Liberdad Avanza) se apresenta sozinho ou junto ao partido de direita Proposta Republicana (PRO), dependendo da província. Esta aliança mostra uma unidade legislativa na qual o PRO quase sempre acompanhou o governo nas votações.

Do outro lado está a oposição peronista (centro-esquerda), que governou durante 17 dos últimos 23 anos e que busca se recompor após a derrota de 2023. O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, emerge como o novo líder deste espaço que tem como referência a ex-mandatária Cristina Kirchner (2007-2015), atualmente presa e inabilitada por corrupção.

Uma terceira força tenta emergir e romper esta polarização: “Províncias Unidas”, que reúne meia dúzia de governadores e partidos do centro-direita à centro-esquerda.

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