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Mais uma vez, um partido nanico recorre ao Supremo Tribunal Federal para pressionar o Congresso a legislar sobre uma questão tributária. E novamente, o STF se prepara para decidir sobre um instrumento que pode ampliar a arrecadação do governo. No caso, a criação de um imposto sobre grandes fortunas.

Nesta quinta-feira (23), o plenário da Corte inicia o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 55), em que o PSOL acusa o Legislativo de descumprir a Constituição Federal por não regulamentar a taxação de grandes fortunas, também conhecida pela sigla IGF.

A ação, apresentada em 2019, se ancora no artigo 153, inciso VII da CF, que condiciona a criação do tributo a uma lei complementar federal. O trecho afirma o seguinte: “Compete à União instituir impostos sobre (…) grandes fortunas, nos termos de lei complementar”.

Para o PSOL, esse dispositivo permanece “letra morta” desde 1988 por falta de ação do Congresso — mesmo o próprio partido tendo apresentado, em 2008, um projeto de lei sobre o tema.

O relator original da ação, o ministro Marco Aurélio Mello, hoje aposentado, votou pelo reconhecimento da omissão no julgamento virtual iniciado em 2021. Na época, o ministro Gilmar Mendes pediu destaque e interrompeu a análise.

Incluído na pauta pelo ministro Edson Fachin assim que assumiu a presidência do STF, no fim de setembro, o tema agora retorna ao plenário físico desde o início. Na prática, o processo abre caminho para que o Judiciário cobre providências legislativas sobre o assunto.

“Congresso não está inerte”

A iniciativa repercutiu no Congresso. Instado a se manifestar, o Senado afirmou que o tema tem sido apreciado com regularidade pela Casa, embora nenhuma proposta ainda tenha sido aprovada. “O Congresso Nacional não está inerte”, afirmou a Casa, em resposta a uma petição do STF.

A Câmara, por sua vez, afirmou que o STF não pode interferir no Legislativo, argumentando que há inúmeros projetos de lei complementares sobre o tema. O projeto do PSOL registrou a última movimentação em 2023, quando incorporou outras propostas.

Tributaristas apontam a judicialização da atividade política. “Partidos menores recorrem ao STF para tentar impor medidas que não conseguem aprovar no Congresso”, avalia Paolo Stelati, especialista em Direito Tributário e sócio da Bornhausen & Zimmer Advogados.

“Ainda que essa ação seja antiga, o fato de ressurgir agora demonstra que pode haver uma motivação política e que cria o risco de o STF determinar ao Congresso que retome o tema.”

Fernanda Terra, do escritório Terra e Vecci Advogados, destaca outro fator de tensão. “Temos sofrido com ativismo judicial do STF”, diz. “Acionar o Supremo para cobrar posicionamento do Congresso tensiona ainda mais esta relação entre os Poderes.”

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Em 2020, PGR disse que Constituição não obriga criação do tributo

A Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se sobre a questão em 2020. Na ocasião, o então procurador-geral, Augusto Aras, opinou contra o pedido do PSOL.

Segundo ele, a regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas é uma opção, e não um “dever constitucional de legislar”. Dessa forma, não haveria omissão do Legislativo.

“O art. 153, VII, da CF não veicula norma de natureza impositiva, e sim
mera faculdade da União para a instituição do IGF, motivo pelo qual, ausente o
dever de legislar, não há que se falar em mora inconstitucional do Legislativo”, afirmou Aras em seu parecer.

“A Constituição Federal não cria impostos, apenas delimita a competência tributária de cada um dos entes federativos para instituí-los por meio de lei em sentido estrito”, acrescentou o procurador-geral.

Uso de ADO pode ser impróprio

Há também inconsistências jurídicas. Flávio Molinari, sócio do Collavini Borges Molinari Advogados, destaca a impropriedade do instrumento de contestação, a ADO. “É um meio impróprio”, afirma. “Em primeiro lugar, porque não se trata de uma inconstitucionalidade.”

Além disso, ele enfatiza que o Judiciário não pode obrigar o Congresso a legislar.

“Se o fizer, a meu ver, parece uma violação ao princípio da separação dos Poderes e à harmonia federativa”, diz. “O exercício da competência tributária é uma faculdade que a Constituição — o poder constituinte originário — atribuiu aos entes tributantes. Se a União até hoje não instituiu, é porque, de forma política, ela optou por não instituir.”

O mesmo argumento é destacado por Stelati. “O Judiciário não pode ser utilizado como meio coercitivo sobre o Congresso Nacional”, afirma. “O próprio Congresso tem afirmado que a falta de consenso democrático é a razão por ainda não ter sido instituído. E essa falta de lei não pode ser suprida pelo Judiciário. O Congresso é o órgão legítimo para deliberar esse tipo de matéria.”

Já o tributarista Matheus Lavocat de Queiroz, do Lavocat Advogados, acredita que o julgamento pode abrir caminho para que o Congresso seja instado a “finalmente regulamentar o tributo de forma definitiva”.

“A ausência de consenso político, econômico e técnico sobre sua forma de regulamentação reflete a complexidade do tema, que envolve não apenas aspectos arrecadatórios, mas também considerações sobre competitividade, segurança jurídica e impactos macroeconômicos”, diz. “O julgamento do STF pode ser determinante.”

Defensores de imposto sobre grandes fortunas falam em “justiça fiscal”

A discussão do imposto sobre grandes fortunas permeia o debate para a redução de desigualdades, concentração de renda e correção do caráter regressivo do sistema tributário brasileiro, em busca da alardeada “justiça fiscal”.

Para Vanessa Canado, doutora em Direito e coordenadora do Insper, do ponto de vista político o julgamento é “simbólico”. “Ele se insere em uma sequência de iniciativas que procuram recolocar, de forma recorrente, o tema da tributação dos mais ricos no Brasil”, afirma.

Do ponto de vista do mérito, porém, ela faz ressalvas: “O IGF endereça mal o problema da falta de equidade do sistema tributário”. Autora de um estudo sobre o tema, ela cita a experiência internacional que atesta a baixa eficiência arrecadatória deste tipo de tributo, diagnóstico amplamente confirmado pelo conjunto da academia.

“Esse pensamento simplista de que basta tributar patrimônio para arrecadar mais ignora que muitos indivíduos com alto poder financeiro simplesmente deixam o país”, diz Stelati. “O efeito prático é negativo para a economia.”

“Apesar do forte apelo social, não se pode assumir que ‘tributar grandes fortunas’ significa, diretamente, aumentar arrecadação e reduzir desigualdade”, afirma Terra. “É importante lembrar que o país já tem uma carga tributária em torno de 33% do PIB. Portanto, aumentar a tributação sem promover uma reforma ampla das contas públicas não é, por si só, uma solução matemática.”

O que seriam “grandes fortunas”?

A discussão se apresenta mais complexa do que simplesmente criar um novo tributo nos moldes dos projetos que tramitam no Congresso. Nos últimos 30 anos, já foram propostos 45 projetos para implantação de um imposto sobre grandes fortunas, todos com disposições distintas.

As divergências emergem desde o próprio conceito de “grande fortuna”, que varia de patamar conforme o propositor. O projeto do PSOL, por exemplo, fixa o parâmetro para cobrança em R$ 2 milhões para a alíquota inicial de 1%, que aumenta progressivamente até 5% para valores acima de R$ 50 milhões.

Para Canado, a criação de degraus de tributação — por exemplo, tributar apenas patrimônios acima de R$ 5 milhões — gera forte incentivo a planejamentos artificiais para se manter abaixo do limite, além de criar distorções e maus incentivos econômicos.

Ela observa que o verdadeiro desafio da tributação dos mais ricos não está no patrimônio estático, mas no tratamento das rendas de capital.

“Hoje, o principal desafio da tributação das altas rendas no Brasil está na isenção dos dividendos, e, em escala global, na dificuldade de tributar rendas não realizadas — como ganhos em ações que ainda não foram vendidas, e, portanto, não geraram renda efetiva”, diz.

Para Stelati, o projeto ignora a realidade patrimonial de parte significativa da população, especialmente idosos que possuem imóveis valorizados, mas não têm renda compatível com a tributação pretendida. “Muitas pessoas com patrimônio elevado já são tributadas de várias formas: sobre consumo, propriedade e renda. Não é correto presumir que não contribuem.”

“Se pensarmos em uma senhora aposentada com um apartamento avaliado em mais de 2 milhões, ela seria incluída nessa tributação, mesmo já pagando IPTU”, explica. “Muitas pessoas idosas têm imóveis valorizados, mas não possuem renda compatível. Essa proposta impacta diretamente a classe média, e não apenas grandes fortunas.”

Quando governador, Dino propôs ação por imposto sobre grandes fortunas

O debate sobre o tema não é inédito no STF. Em 2015, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 31) foi protocolada pelo então governador do Maranhão, Flávio Dino – que hoje é ministro do STF e poderá votar no julgamento.

Na ocasião, o Supremo nem sequer chegou a discutir o mérito da questão, entendendo que o autor não tinha legitimidade para apresentar a ação.

“Por isso, não houve definição de posição da Corte sobre eventual inconstitucionalidade por omissão”, explica Molinari. “No caso atual, o ponto central é saber se cabe ou não o conhecimento da ação, porque a ausência de regulamentação é uma deliberação constitucional do Parlamento.”

A julgar por casos semelhantes, no entanto, a “lógica do ativismo” pode prevalecer. Há precedentes em que o Supremo decidiu com base na omissão do Congresso, como no julgamento que reconheceu a homofobia como crime de racismo. Naquele momento, entendeu-se que a falta de regulamentação impedia a plena eficácia da Constituição.

Vale lembrar também o perfil associado à defesa de pautas sociais e de direitos humanos do atual presidente do STF. Entre os possíveis motivos para Fachin reintroduzir o tema estão a busca por maior arrecadação e o entendimento de que a instituição do IGF teria destinação social relevante, já que sua receita seria destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.

Stelati ressalta, no entanto, que mesmo que o Supremo reconheça a omissão legislativa, isso não implica a aprovação automática do imposto: “Um eventual êxito da ação apenas determinaria que o Congresso avalie a questão”.

Para ele, além das distorções econômicas do projeto, o risco maior é institucional, pelo uso do STF como arena para avançar pautas que não têm apoio no Congresso.

“O partido no poder tem recorrido ao STF para tentar implementar sua agenda”, avalia, lembrando o caso recente do aumento do IOF, que o Congresso barrou, mas acabou sendo autorizado por liminar de um ministro do STF, Alexandre de Moraes.

“Isso demonstra que há um uso político do Judiciário”, diz. “E infelizmente, o STF tem adotado uma postura menos técnica”.

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