Ecos do Caparaó – CartaCapital

Era 2019 quando uma produtora do Caparaó decidiu dobrar a esquina do destino. Até ali, a rotina era a do café commodity: colheita rápida, secagem em terreiro comum, venda sem diferenciação. Um curso de degustação, porém, mudou tudo. Diante de xícaras tão distintas na mesma mesa, ela percebeu que o café poderia ter camadas de aroma e sabor — e que a história da sua família cabia naquela descoberta. Voltou para casa e pediu ao marido um terreiro suspenso. Separou cerejas maduras, fez pequenos lotes, acompanhou a secagem com zelo de artesã. O sítio era de baixa altitude, o senso comum dizia que dali não sairiam cafés de excelência. Saíram. E, no primeiro ano, vieram prêmios regionais e nacionais, seguidos de exportações em microlotes.

O nome dela é Silmara Emerick. Quarta geração de uma família de Alto Jequitibá (MG), transformou uma propriedade modesta em laboratório de qualidade, escola de sustentabilidade e vitrine de empreendedorismo familiar. Depois das primeiras premiações, Silmara implantou com os filhos uma pequena torrefação no sítio, vende cafés verdes e torrados diretamente ao consumidor, abastece cafeterias e já exporta microlotes por meio de concursos e plataformas para países como Canadá, Reino Unido e França. A virada foi técnica e também cultural.

“Antes, a gente nem sabia quanto custava uma saca. Hoje anotamos tudo. Mudamos hábitos, não queimamos lixo, plantamos árvores e organizamos a propriedade”, diz. O ganho é duplo: ambiental e econômico.

Um território moldado pela natureza

Caparaó vem de um antigo dizer indígena: “águas cristalinas que rolam das pedras”. A imagem descreve a serra e também o ritmo da região, marcada por nascentes, encostas e uma cultura profundamente ligada à natureza. Entre Minas Gerais e Espírito Santo, 16 municípios formam esse território. São cerca de mil produtores, quase todos em agricultura familiar, e parte deles atua com cafés especiais — um grupo que puxou a transformação das últimas duas décadas.

CAPARAÓ-MG – Projeto Caparaó- Sítio Recanto das Pedras- Foto Leo Lara/Area de Serviço

Qualidade reconhecida e protegida

A qualidade do café do Caparaó nasce na geografia e se confirma no manejo. Altitude acima de mil metros, maturação mais lenta, amplitude térmica e microclimas que descem da cordilheira do Parque Nacional do Caparaó formam o pano de fundo. O relevo impede mecanização: a colheita é manual, cereja a cereja, o que ajuda a selecionar apenas frutos no ponto ideal.

No pós-colheita, a região estabeleceu um repertório técnico que inclui seleção dos frutos, secagem em camas suspensas com revolvimento constante, pontos de secagem controlados até a faixa de umidade segura e perfis clássicos de processamento — natural, honey e lavado — escolhidos conforme clima, infraestrutura e objetivo sensorial.

O resultado aparece na xícara: cafés naturalmente doces, com acidez delicada, corpo sedoso e um leque de notas que vai de mel, rapadura, chocolate e caramelo a frutas amarelas e florais. A avaliação segue padrões internacionais, como o protocolo da SCA, garantindo comparabilidade e linguagem comum com o mercado global.

Café da Silmara, na Serra do Caparaó. Foto: Bruno Figueiredo

A virada institucional veio com a criação, em 2016, da Associação de Produtores de Cafés Especiais do Caparaó (APEC), que passou a integrar capacitação, comunicação da marca territorial e proteção da origem. Em 2021, o INPI reconheceu a Denominação de Origem (D.O.) Caparaó, etapa que colocou a região no mapa das origens controladas do país. O selo não é só  um rótulo, mas um ativo que garante rastreabilidade por lote, com QR Code e registro acessível ao consumidor, define requisitos ambientais, sociais e de processo, protege o uso correto do nome Caparaó, e, sobretudo, valoriza o produto no mercado, permitindo preços mais altos e acesso a clientes exigentes.

“Aqui sempre se produziu café, mas o especial ganhou notoriedade há 15 ou 20 anos”, explica Gustavo Villas Boas, produtor e liderança regional em Espera Feliz (MG). “O que nos diferencia é a combinação de altitude, microclima e o saber-fazer das famílias”, diz.

Sustentabilidade que nasce no campo

A proximidade com o Parque Nacional faz com que a preservação de nascentes e encostas esteja diretamente ligada à qualidade da lavoura. Muitos produtores incorporaram práticas regenerativas, como plantio de árvores nativas, manutenção de cobertura do solo, uso racional da água e reciclagem de resíduos. A sustentabilidade deixou de ser discurso e passou a ser rotina, influenciando diretamente na produtividade e na imagem internacional do café da região.

O empreendedorismo também ganhou novas formas de expressão. Produtores passaram a atuar como marcas: criaram identidades visuais, sites, rotas de venda direta e relacionamento com cafeterias e torrefações. Microlotes bem trabalhados geram valor agregado e abrem portas fora do país. A trajetória de Silmara mostra isso com clareza: “Não é muito volume, mas é valor. Foi o que nos permitiu investir, replantar áreas antigas e enxergar futuro”, afirma.

A integração com o turismo transformou a xícara em experiência. Roteiros guiados, colheita artesanal, campeonatos de abanação, torra acompanhada ao vivo e degustações ajudam o visitante a entender o que faz um café especial — e por que ele vale mais. Em 2025, nasceu a Rota de Experiências Caparaó Mineiro, com 13 vivências em quatro municípios. A iniciativa organiza sinalização, capacitação, gastronomia e identidade territorial, trazendo visitantes para além do Parque Nacional e ampliando a renda de quem vive do café.

Café Os De Lacerda. Foto: Bruno Figueiredo

A nova geração entra em cena

É aí que surge a história de Luiza Lacerda, produtora do “Café Os De Lacerda” e representante de uma nova geração que combina tradição familiar, excelência técnica e visão empreendedora. A família cultiva café desde 1952, quando o avô plantou as primeiras mudas em Espera Feliz. A virada para cafés especiais começou em 2010, quando ele venceu um concurso regional de qualidade promovido pela Emater de Minas. Desde então, a família participa anualmente de competições e consolidou um nome respeitado no circuito nacional.

Luiza iniciou sua trajetória em 2020, no meio da pandemia, quando decidiu se dedicar ao café. Naquele ano, enviou sua primeira amostra em nome próprio a um concurso estadual — e conquistou o terceiro lugar geral, com 90,333 pontos, sendo a mulher com maior nota da edição. A premiação garantiu vaga no concurso nacional da ABIC, onde venceu e foi reconhecida com o título de melhor café do Brasil. “Foi um divisor de águas. Eu trabalhava como funcionária pública, mas percebi que o café era o meu caminho”, conta.

Desde então, Luiza investiu em infraestrutura e experiência. Construiu um deck para servir cafés especiais, criou uma cafeteria na propriedade, fez cursos de degustação e classificação, e passou a receber visitantes com tours guiados, passeios de trator e piqueniques. A torrefação familiar complementa o trabalho: cada membro da família atua em uma etapa, da lavoura à torra, mantendo o caráter artesanal. Hoje, ela vende para o mercado interno, trabalha com variedades como Catuaí Vermelho, Caparaó Amarelo e Geisha, e mantém os processos pós-colheita adaptados ao perfil sensorial que deseja alcançar. “Tudo aqui é feito por nós. A produção é familiar, assim como a história que está por trás de cada xícara”, diz.

Produção de Luiza Lacerda, do Café Os De Lacerda: Foto: Bruno Figueiredo

A trajetória de Luiza reforça o papel das mulheres e dos jovens na sucessão rural, além de ilustrar como tradição e inovação podem caminhar juntas. Assim como Silmara, ela se apoia em redes de assistência técnica, como Emater, Incaper e Sebrae, que seguem presentes no dia a dia dos produtores.

O Caparaó também sente os sinais do clima. Diagnósticos recentes apontam secas severas e mudanças no regime de chuvas em Minas Gerais, com áreas registrando até 50% de queda frente às normas sazonais. A resposta no campo inclui sombreamento, quebra-ventos, terraços para retenção de água, diversificação de cultivares e adaptação no manejo das floradas. O objetivo é resiliência: manter qualidade e produtividade mesmo sob variabilidade climática, honrando a D.O. e o compromisso com a sustentabilidade.

Para Villas Boas, a síntese é: “O café especial aqui é cultura, trabalho e paisagem. A D.O. protege o que somos, e o empreendedorismo projeta para o mundo.” A fala encontra eco em Silmara, que encerra com a serenidade de quem mede o tempo em safras: “O café especial não é só qualidade na xícara; é dignidade para o agricultor, respeito ao ambiente e futuro para os filhos que escolheram ficar.”

Do primeiro terreiro suspenso de Silmara ao selo de origem que dá rosto e voz ao território, passando pela nova geração que Luiza representa, o Caparaó mostra que qualidade, sustentabilidade e empreendedorismo não competem — se somam. Nas águas que rolam das pedras, como diz o nome indígena, segue correndo a história de um café que respeita a montanha, orgulha quem produz e conquista quem prova. É assim que um território inteiro vira referência — e que cada xícara encontra o seu melhor destino.

Café da Silmara: Foto Bruno Figueiredo

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto é uma edição ampliada do que aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aroma de perfeição’

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